Em agosto não nos vimos
Revista Jornalismo & Ficção
atualizado 3 semanas atrás

“Este livro não presta. Tem que ser destruído”, disse Gabriel García Márquez. Mesmo assim o leitor é engolido pela ânsia de encontrar o mestre do realismo mágico, tateando a história da protagonista, em aventuras picantes pelos hotéis de uma ilha caribenha, todo mês de agosto. Só no Brasil, pela Record, o romance já alcançou 20.139 cópias e está na lista dos dez livros de ficção mais vendidos.
Por Ciça Guirado e Bárbara Borowski
Dia 16 de agosto, Ana Magdalena Bach pegou a barca para a ilha onde está enterrada sua mãe. Sempre, neste dia sagrado, levava flores e lá desabafava sobre a vida.
Mas, aventuras sensuais vão fazendo as viagens mais motivadas…Um roteiro, que parece simples, ganharia força e magia com a escrita arquitetada por García Márquez. Como em outras histórias caribenhas, ele criaria nuances sinuosas, reviravoltas, peripécias e suspenses… Mas não é assim o romance.
Autorizado pelos filhos Rodrigo e Gonzalo, foi lançado dia 6 de março de 2024, pela Random House, com edição final do espanhol Cristóbal Pera. No Brasil, com tradução de Eric Nepomuceno, saiu pela Editora Record. Todavia, esse texto não caiu no gosto do autor, mesmo depois da quinta versão. Em seus últimos anos de vida, avisou: “Este livro não presta. Tem que ser destruído”.
García Márquez partiu em 2014. Toda a sua biblioteca, textos datilografados, manuscritos e outros papéis – que registraram seu processo de criação – foram vendidos para a Universidade do Texas, em Austin, nos EUA. Lá encontraram fragmentos e notas desse texto inédito.

Todo mês de agosto, Ana Magdalena Bach, em viagem nada misteriosa, visita o túmulo da mãe, numa ilha caribenha. García Márquez descreve o caminho, pelo mesmo rio Magdalena, que em 1950, atravessou com sua mãe para vender a casa dos avós, em Aracataca. No barco, aos 17 anos, relia “Luz em agosto”, de William Faulkner: “que era entonces el más fiel de mis demónios tutelares”, confessou em “Vivir para contar” (GGM, 2002, p.13).
Desde que “Em agosto nos vemos” foi anunciado, em 2023, pairava no ar uma angústia. Um livro póstumo, não autorizado. Muitos amantes do grande Gabo tinham medo de ler. Receio de não encontrar o autor. De fato, os comentários realizados aqui sobre a obra não se dirigem ao grande Gabo, mas ao livro que ele não gostou de ter escrito.
O título, em princípio parecia aludir ao clássico “Luz em agosto”, de William Faulkner. Inseguro pela ausência de memória, talvez Gabo tentasse retornar ao mestre e ao modelo que havia seguido em suas primeiras ficções: “La hojarasca” (1955), “El coronel no tiene quien le escriba” (1961), “La mala hora” (1962), “Los funerales de la mamá grande” (1962). Ainda em “Cien años de soledad” (1967) existem resquícios da influência faulkneriana na arquitetura do roteiro, que transformou Yoknapatawpha (o condado fictício de “Sartoris”) em Macondo, e as conflituosas histórias de colonização nos EUA, transportadas para a Colômbia.
“Luz em agosto” é protagonizada pela jovem Lena Grove. Mas, várias histórias atravessam personagens densos. Grávida e vitimizada, a moça perambula em agosto de déu em déu, de carona em carona, em busca do pai da criança. Não tem nada que ver com Ana Magdalena Bach. Mulher madura de 46 anos, latino-americana cheia de tesão pela vida e que, ao buscar fantasias sensuais, reelabora sua trajetória de esposa e mãe cansada do cotidiano enfadonho. Os outros personagens de “Em agosto nos vemos” não tecem destinos. Não há suspense, encantamento. A polifonia aprendida com Faulkner não estava mais à mão de semear.

“O mar era um remanso de ouro debaixo do sol da tarde”, assim Ana Magdalena Bach se despede do último agosto. Do romance “Em agosto nos vemos” restam sombras de García Márquez recuperadas por outras mãos. Não se sabe das trocas de palavras, ou sobreposições de emendas e acrescentos ao texto, editado por Cristobal Pera, baseado na quinta versão, deixada pelo autor, em julho de 2004.
Por vezes, é constrangedor espreitar García Márquez, em algum esconderijo da escritura, clamando pelo lápis vermelho de Clemente Manuel Zabala, que lhe corrigia os primeiros textos, em 1948, no jornal “El Universal”, de Cartagena. O ritmo do romance não sabe a “vallenato”. A escrita parece ir em linha reta, sem dissonâncias de Bela Bartok, sem batidas roqueiras dos meninos de Liverpool – sonoridades que acompanhavam Gabo.
Mostrar os bastidores do texto não é o propósito deste “Em agosto nos vemos”, “por supuesto”, apesar de seu editor evidenciar alguns pontos históricos no anexo “Nota da edição original”. Espera-se que em algum futuro possível, um geneticista (especialista em Crítica Genética) recupere não só as emendas das quatro primeiras versões, assim como informe, em largas notas de rodapé, sobre o processo de criação de Gabriel García Márquez, às voltas com esse tema entre 1999 e 2004. Com certeza, de algum lugar, sobre os lençóis de Remédios, a bela, ele diga: “Gracias”.
E se a geografia e as paisagens lembram o Caribe, as garças que esvoaçam na ilha não fazem exuberantes voos. Não chegam a roçar as asas do velho anjo caído no galinheiro do povoado, que eram enormes e pesavam naquele “senhor muito velho…”. Assim estava o autor na época da escrita de “Em agosto nos vemos”. Já não se lembrava do dia em que seu avô o levara para conhecer o gelo.
Bárbara Borowski, designer multidisciplinar com estudos em jornalismo e cinema. Seu trabalho recente inclui festivais como DocsMX, DocsValència e Fes! Film Festival Cinema i drets humanos, assim como revistas literárias e organizações não governamentais. Atualmente é designer e museóloga no Museu Franz Mayer, Cidade do México. Colaboradora externa do Projeto Gabo de Pesquisa desde 2018.
Ciça Guirado é jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), doutora em História da Comunicação (Universidade Nova de Lisboa) e Pós-doc em Jornalismo (UFSC). Professora da UEL, coordena, desde 2012, o Projeto Gabo de Pesquisa e edita a Revista Jornalismo & Ficção na América Latina.