A morte com a magia de Gabo
Revista Jornalismo & Ficção
atualizado 8 meses atrás

Os processos que envolvem a ameaça de morte constante, decorrentes da pandemia causada pela Covid-19, trazem à tona a quebra com o conceito de eternidade. Os onze contos reunidos em Olhos de cão azul saíram na imprensa, entre 1947 e 1955. Narrativas que se aprofundam na psicologia dos personagens: medos, perturbações e desejos.
Mateus Saraiva
A terceira renúncia
E se você morresse em vida? Este conto traz a história de um garoto que, aos sete anos de idade, foi diagnosticado com tifoide (doença bacteriana) e desde então “viveu” a morte literal e metafórica dentro de um caixão, até seus vinte e cinco anos.
A história acompanha as percepções que a personagem tem sobre a morte em vida. Ele está consciente, mas seu corpo é um cadáver. Sua mãe também é apresentada como acompanhante da degradação do filho. Ela se alegra por saber que o sofrimento acabou, pois, o menino está morto. Mas, se entristece com a possibilidade da chegada definitiva da morte, uma vez que o filho continua vivo no ataúde.
O texto é uma reflexão melancólica e agonizante sobre vida e morte com os toques surreais de Gabo. Será que estamos mortos em vida? Seria a morte metafórica pior que a morte física?

A outra costela da morte
Esse conto do livro OLHOS DE CÃO AZUL traz uma abordagem perturbadora sobre a morte e a culpa. No início, Gabo apresenta as percepções de um homem que no dia da morte de seu irmão gêmeo tem sonhos atormentados. Sonhos repletos de elementos absurdos. O falecido está travestido de mulher, enquanto tenta arrancar os olhos com uma tesoura. O gêmeo vivo é perseguido por uma culpa surreal de gozar a vida.
Na segunda parte do conto, a perspectiva é a do gêmeo morto. Ele teve um tumor e viveu seus últimos momentos de forma agonizante. Sentia seu corpo em estado de putrefação e alternava os estados de consciência da sua mente. As mesmas sensações que sentiu antes de morrer, foram transportadas para o irmão vivo.
Um estava perturbado com a morte do outro, pois se via nele. Eram partes iguais. O maior medo do irmão que estava vivo era padecer da mesma doença do outro gêmeo. Assim, sucumbia diante de uma alucinação feroz que o culpava o tempo todo. O conto traz elementos do mundo dos sonhos para trabalhar a perturbação dos dois irmãos, o que fica e o que vai.

Eva está dentro de seu gato
A morte pode ser uma experiência extraordinária. É o que García Márquez demonstra neste conto de OLHOS DE CÃO AZUL de forma macabra e surreal. Eva vive uma vida desconfortável pela beleza hereditária. Suas frustrações ficam latentes quando dorme e sonha com insetos andando em seu corpo. Uma vida sobrenatural, envolta em mistérios.
Enquanto estava viva sentia pavor da laranjeira plantada em seu quintal por temer que o cadáver de um menino enterrado ao lado se misturava com o caldo do fruto. Sua mente paranoica era convicta de que as laranjas se fundiam ao corpo apodrecido. Eva vivia muitas privações. Tinha medos que a acorrentavam.
Depois que morre, descobre que pode consumir as laranjas por ser um espírito, mas precisa se infiltrar em um corpo vivente. Decide entrar em seu gato, realizando um grande desejo. Ainda que vague pela casa, procurando o gato novamente, sentindo o aroma de arsênico que causou sua morte, Eva experimenta uma felicidade que não encontrou em vida. Gabo traz uma dimensão enigmática e bonita para a morte. A possibilidade de fazer coisas que a vida impede. Nesta história, morrer não é tragédia. É solução.

Amargura para três sonâmbulos
Delicada e imperceptível. Assim Gabriel García Márquez apresenta a morte neste conto de OLHOS DE CÃO AZUL. A história é permeada por incertezas e medos em meio ao enredo com tempo e espaço inconstantes. Três irmãos acompanham a degradação de sua mãe. A princípio querem entender o que houve com ela, pois, além de ferimentos, apresenta sinais de loucura. Os três discutem sobre a possibilidade da matriarca nunca mais voltar a sorrir. Presa em eterna melancolia. Sua felicidade estava morta.
Os irmãos cuidam de sua mãe, pois temem que ela morra. Sua loucura e tristeza são descritas através de olhares. A iminência de morrer está associada a suas impossibilidades. Ela vive uma morte metafórica. Perdeu suas perspectivas. Está deslocada da própria existência. Mãe e filhos vivem a nebulosa sensação da morte que se aproxima. Esperar por ela é mais macabro do que se imagina. Os filhos vivem sentimentos de temor, amargura e incerteza. Assistem, impotentes, à degradação da própria mãe. Ela irá morrer e resta aos três lidar com a angústia de esperar o fim.

Diálogo do espelho
Ilusão e Realidade. Os dois aspectos que fazem parte deste conto, de Gabriel García Márquez. A imaginação do autor traz um encontro entre dois irmãos – um em cada plano da vida – através do reflexo do espelho. O real e o ilusório confundem sua mente.
Mais do que uma experiência sobrenatural, a história é uma alegoria da vida. Em algum momento nos forçamos a deixar a imaginação presa em um espelho. Encaramos a realidade que não abre portas para a fantasia. O grande dilema deste homem é viver na balança do sonho e da realidade, sem saber qual irá pesar.
O que você faria se encontrasse um familiar morto no espelho? A experiência poderia ser mágica para alguns e assustadora para outros. Gabo usou o cotidiano para trazer uma experiência surreal e bela. A verdadeira acepção do realismo mágico.

Olhos de cão azul
Este conto que dá́ nome ao livro de García Márquez introduz magia e pesadelo: cenários possíveis do mundo dos sonhos. A história é a que menos menciona temáticas relacionadas à morte, mas ela espreita, sorrateira, todo o enredo.
Um homem se apaixona por uma mulher que só aparece em seus sonhos. Juntos, possuem um código: “olhos de cão azul”. Juntos, vivem uma paixão que surge da realidade que o personagem projeta ao dormir. Delírio. Mistério. Fascínio. Fantasia. Ele encontra refúgio no sono. É a anestesia da realidade.
O sonho seria uma forma de morrer por causar um desligamento breve da realidade? O que ocorre nos sonhos nem sempre se explica. A ausência de explicação não poderia levar a outro tema se não o realismo mágico, pois no universo latino-americano de Gabo, nada se explica, tudo acontece.

A mulher que chegada às seis
Gabriel García Márquez contará um segredo, mas você não pode revelar a ninguém. A fidelidade entre dois amigos é apresentada neste conto de OLHOS DE CÃO AZUL. Uma história sobre o segredo de uma mulher que costumava chegar às seis em ponto no restaurante, porém, um incômodo a fez ir mais cedo ao estabelecimento.
Chegou sem muitas palavras e com um aspecto melancólico no olhar. Precisava da lealdade do amigo, dono do restaurante. Ela cometeu ou quer cometer um crime. O conto é desenvolvido através de diálogos e emoções instáveis. No universo da morte que Gabo criou nesta obra, está presente também o desejo de matar. A busca incansável por esconder intenções secretas.
Ainda que tenha semelhança com um suspense policial, a história não perde a aura misteriosa e mágica que o autor propõe nos demais contos. Traz o leitor de alguma forma para a sensação vivida ali. Essa não foi diferente. Ao longo da conversa entre os dois, muitas dúvidas e incômodos surgem: e se você tivesse que acobertar um crime? E se você cometesse um crime? Tais provocações formulam mais uma história perturbadora dessa obra.

Nabo, o negro que fez esperar os anjos
Conto de OLHOS DE CÃO AZUL traz a história de Nabo, um cuidador de cavalos que tinha amor pela música e cuidava da filha de seus patrões. A herdeira tinha problemas psicológicos que o funcionário amenizava ao ligar sua vitrola e cantar para ela. O personagem perde a consciência e apresenta sinais de confusão mental depois de levar um coice enquanto limpava os animais. Um anjo da morte tenta levar Nabo ao mundo dos mortos, mas ele se recusa, pois quer cantar para a menina.
Mais do que um embate à morte, a história se trata de uma alegoria sobre a perda de identidade que pode ser a loucura do ponto de vista dos outros. Para os demais, tanto ele quanto a menina estão mortos. Há sempre algo profundo nas histórias de Gabriel García Márquez, que traduz de forma mágica, assuntos mórbidos e permite aos seus leitores uma interpretação particular do mundo.
O realismo mágico é um estilo literário que, envaidecido do sobrenatural, não deixa muito espaço para a racionalidade. Assim são a loucura e a morte. Ambas temidas e incompreendidas. A loucura está nos olhos de quem vê. Afinal, o que são a loucura e a morte?

Alguém desarruma estas rosas
Em 15 de agosto, Mercedes Barcha, “a mulher que tornou possível o sucesso de Gabriel García Márquez”, como diz o jornal espanhol El Pais, faleceu. Depois de viver seis anos de solidão com a ausência de seu esposo, chegou sua hora. Por ironia do amor, aos 87 anos, mesma idade em que Gabo se foi. Esse conto é premonitório. Traduz o encanto e a melancolia que a morte traz. Dói lidar com a ausência.
Na história, o espírito de um menino rouba as flores que sua amiga cultiva para colocar em seu túmulo. Ela, muito velha, mora na casa que foi do garoto e faz orações diante do altar que criou. A senhora sabia que alguém levava suas flores. Sentia uma presença sobrenatural. Suspeitava ser o amigo. O conto elucida a forma latino-americana de lidar com o luto. A sensação de que os que foram estão ali, cuidando, observando e participando do mundo dos vivos.
Existem histórias que foram feitas para durar uma eternidade. Nem a morte pode findar um amor verdadeiro. Contrário às suposições do matrimônio, o conto declara que a morte não separa. Ela liga as pessoas mais intensamente. Inclusive quando os que se foram decidem voltar. Agora, Gabo não precisa roubar as flores de Mercedes. Juntos, eles fazem o que sempre fizeram pelo outro, se amam.

Alguien desordena estas rosas
El pasado 15 de agosto, Mercedes Barcha, «la mujer que posibilitó el éxito de Gabriel García Márquez» según el periódico español El País, murió. Tras vivir seis años de soledad debido a la ausencia de su esposo, llegó su hora. Por ironía del amor, a los 87 años, misma edad que tenía Gabo cuando se fue.
«Alguien desordena estas rosas», es premonitorio. Traduce el encanto y la melancolía que conlleva la muerte, lo doloroso que es lidiar con la ausencia. En la historia, el espíritu de un niño roba las rosas que adornan su túmulo. La señora que se las cosecha vivía en la casa que era de él y hasta le montó un altar. Ella sabía que alguien se llevaba las flores. Sentía una presencia sobrenatural. Sospechaba ser el amigo. El cuento elucida la manera latinoamericana de manejar el duelo. La sensación de que los que están allá cuidan, observan y participan en el mundo de los vivos.
Hay historias hechas para durar una eternidad. Ni siquiera la muerte puede ponerle fin a un amor verdadero. Contrario a los votos matrimoniales, el cuento declara que la muerte no separa, pero une más intensamente a las personas. Incluso cuando los que se fueron deciden regresar. Gabo ya no necesita robarle las flores a Mercedes. Juntos, ahora ellos reanudan lo que siempre hicieron uno por el otro: amarse.
P.S. Tradução para o espanhol de Bárbara Borowski, publicação especial para Colômbia e México pelo @blogdogabo e pela página do Facebook Blog do Gabo, em 15 de agosto de 2020.

A noite dos alcaravões
Neste conto de OLHOS DE CÃO AZUL, de Gabriel García Márquez, três homens são atacados por Alcaravões. O ataque cega as vítimas. A história mostra como os amigos saíram, com medo, em corpos sem identidade. O medo não era da figura enigmática e assustadora do pássaro, mas da constante sensação de que existem Alcaravões cegando países latino-americanos. Uma alegoria política de como a expressão autoritária nos condiciona a perder a visão. Se não vemos, não questionamos.
O silêncio é a expressão que mais se espera do povo latino-americano. Seja por medo do que fazemos quando descobrirmos nosso potencial, ou por menosprezar e minimizar o passado. Esse silêncio toca na ferida que somos condicionados a manter: a alienação. A América Latina sempre conviveu com Alcaravões de todos os tamanhos e tipos sobrevoando os céus de sua história.
Gabo apresenta a morte da forma menos metafísica e literal possível. Quando o indivíduo tem seus olhos arrancados, ele morre para a sociedade. Quanto mais Alcaravões, mais cegos políticos. Assim, uma sucessão de mortes. Fica a reflexão sobre a mórbida face dos abusos de autoridades – políticas ou civis. Quando morreu sua indignação? Quem arranca seus olhos?

Isabel vendo chover em Macondo
O último conto de OLHOS DE CÃO AZUL traz uma experiência angustiante e extraordinária, causada por um evento natural: a chuva. A história conta o drama de Isabel, ao passar os dias chuvosos isolada vivencia emoções mórbidas e fascinantes. Melancolia. Medo. Angústia. Quando enfrentamos dias calorosos, tudo o que esperamos é uma chuva. Porém, o que fazer se ela durar dias, semanas, meses?
Gabo trabalha as expressões que Isabel tem ao longo dos dias como reflexo de qualquer pessoa que se vê impossibilitada pelas forças da natureza. Altruísta e trágica, assim é toda expressão natural da existência. A morte não poderia ser diferente. Como um dia chuvoso ela tem seus estágios de tristeza, morbidez e sentido. Tanto a chuva quanto a morte são temidas a sua maneira. Uma fertiliza, alaga, afoga. Outra encerra o que não se pode mais existir.
Ambas transformam e mostram o momento certo de finalizar as coisas. Se nem a chuva, tão poderosa, é eterna, por que a vida seria? Resta contemplar os desdobramentos dessa eterna tempestade que são os ciclos de vida e morte e aguardar a chegada do arco íris, sinônimo de esperança. Para algo novo surgir, outra tem que morrer. Morre a chuva, o autor, a personagem e, um dia, você.