De trombadinha a delegado de Polícia
Revista Jornalismo & Ficção
atualizado 5 dias atrás

Aos 91 anos, Guirado publica muito mais que uma autobiografia: ele estreia um projeto de vida, uma celebração em linguagem simples, que faz o leitor se sentir como uma criança sentada no colo de um ente querido, ouvindo por horas as histórias mais malucas de seu passado. É familiar, honesto e bonito.
Por Bela Garcia
Machado de Assis escreveu que “o tempo caleja a sensibilidade e oblitera a memória das coisas”. Talvez estivesse certo. Pelo menos, é isso que Luiz Guirado transmite em sua autobiografia: De trombadinha a delegado de Polícia. É uma obra sobre humanidade, com suas falhas, afetos e conquistas. Escrita com sinceridade tão brutal quanto sua memória; uma verdade que o tempo tornou possível por, talvez, amenizar a dor das batalhas – uma história sobre a vida.
A obra é escrita de forma fluida e separa, quase que por tópicos, os episódios mais marcantes da vida do autor-personagem. E é nessa simplicidade que o leitor se vê devorando as páginas como se horas fossem segundos. Os ambientes narrados tornam-se quase familiares ao serem descritos de forma objetiva. Transportam o leitor para o cenário: as ruas de São Paulo, a grama de Santo Anastácio, as luzes da delegacia e ouve-se, quase de perto, o barulho do trem. É sinestésico. Sente-se o gosto do pão da Dona Maria, o cheiro da pólvora das armas, o barulho do caminhão e a dor do corte no lábio.
Luiz Guirado narra, ao longo de 270 páginas, publicadas pela Editora Viseu, o caminho que trilhou até chegar ao lançamento de sua autobiografia, ao lado de sua amada esposa Marina. De erros e acertos foi construída a vida do autor. Numa trajetória cinematográfica, cheia de reviravoltas, é a vida de um homem que viu de tudo, sentiu tudo e fez quase tudo. O jovem elétrico, arteiro e inconsequente se transforma no senhor de respeito, que vê seu passado – por vezes conturbado – como uma dobra no tempo que o trouxe até os dias de hoje, ao lado da esposa que, segundo ele próprio, foi quem mudou sua trajetória e a fez valer a pena.
Mais que um livro de memórias, De trombadinha a delegado de Polícia é um testemunho vivo de que o ser humano é feito de fases, erros, chances e amor. Ao longo das páginas, Guirado não se coloca como herói, mas como alguém que ousa contar a verdade – mesmo a mais dura – com coragem e serenidade. E revive todos os momentos que marcaram sua viagem por esse mundo – que ainda não chegou ao fim. Digno de uma autobiografia, a sensação é de “é claro que ele escreveu” ao refletir sobre a obra. Um homem que foi tudo só faltava ser autor.
Apagando bitucas de cigarro com tiros, a leitura provoca muitas emoções e convida à reflexão sobre um passado com conflitos tatuados e uma família linda, que se forma e se fortalece ao longo dos anos. Em alguns momentos, é impossível não se comover com a vulnerabilidade exposta; em outros, o leitor sorri, como quem escuta um causo contado na varanda, no fim da tarde. Mas também há indignação perante algumas atitudes do autor – é cru, honesto e visceral. São os erros de um homem escritos sem medo de julgamentos.
E talvez, no meio da leitura, o leitor ouse pensar que conhece Luiz. Essa familiaridade que se constrói página a página mostra o autor mais como humano e menos como personagem – é o aspecto tátil da biografia. Luiz Guirado é real, sente-se. Sabe-se os motivos que levam um homem de 90 anos a não gostar de pinga e a pensar tanto sobre uma cigana. Como leitora atenta, decorei e entendi parte de suas manias. Talvez Luiz não beba leite comigo em um café da tarde, mas provavelmente jogasse um bom baralho enquanto me conta sobre o dia em que ficou preso na estrada.
De trombadinha a delegado de Polícia não é apenas recomendado — é necessário para todos que querem viver mais de uma vida e, especialmente, para quem ainda acredita que é possível mudar. Um livro que, como o próprio autor, carrega cicatrizes, mas também muita história. E é na coragem de revisitar memórias e provocar todos aqueles que já cruzaram sua corrente de vento que Luiz entrega uma obra talvez não autorizada por todos os seus personagens, mas que carrega um alívio por ser tão honesta a ponto de causar desconforto. Machado de Assis escreveu que o tempo caleja a sensibilidade e oblitera a memória das coisas. Ele estava certo.
Bela Garcia é estudante de Jornalismo na UEL, participa da Revista Jornalismo & Ficção na América Latina e desenvolve o projeto de IC: “A Sangue Frio, de Truman Capote- o True Crime como jornalismo literário”.