A sinfonia das veias abertas e o funk consciente
Revista Jornalismo & Ficção
atualizado 2 meses atrás
“A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la.”
Eduardo Galeano
“Eu sou o funk, hoje válvula de escape, mudando as realidades, sem fazer ninguém por aí sangrar”
Favela Pede Paz (Hariel, Lele JP e Neguinho do Kaxeta)
Por Luan Chechi
Na América Latina, onde as ruas falam e as paredes sussurram histórias de dor e resistência, os fantasmas do passado se encontram com as vozes do presente. É nesse entrelaçar de mundos, que a literatura de Eduardo Galeano e as batidas do funk consciente dançam no mesmo ritmo, uma celebração e um grito de alerta. Vozes que representam a periferia. Vozes que não são escutadas. Vozes que tem só um destino. Sempre serão ocultadas.
“As Veias Abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano não era apenas um livro; era um documento de denúncia. Aquelas páginas possuíam uma tinta feita de lágrimas, suor e sangue, que contavam a história por trás da América Latina. Quando ele escrevia, os personagens da história antiga, colonizadores opressivos e os povos originários, saíam de suas sepulturas e começavam a sussurrar para ele, oferecendo memórias de dor e resistência. Galeano, com um olhar de sábio e poeta, capturava essas vozes e as costurava em um mosaico de injustiça e esperança. A cada palavra, ele explicava as feridas abertas, revelando um tecido social entrelaçado com as marcas do imperialismo e da exploração.
30 anos depois da publicação de seu livro, nas vielas e becos das periferias brasileiras, um novo instrumento de denúncia estava sendo forjado. Hariel e Neguinho do Kaxeta são os novos contadores de histórias, alinhando a tinta e papel com ritmo e versos. Seus microfones substituíram as armas. Em suas letras, explica o espírito das ruas. No ritmo do funk, a realidade é a protagonista, o sofrimento e a resistência são traduzidos em batidas que fazem o chão tremer.
Imagine que o universo das periferias, com suas cores vibrantes e caos ordenado, é um espelho das veias abertas descritas por Galeano. Hariel, com seu lirismo cru e visceral, faz com que as palavras dancem no ritmo do seu coração. Ele fala sobre a violência e a falta de oportunidades, não apenas como uma denúncia, mas como uma oração para que as almas sejam ouvidas. Suas músicas são como clamores, que sobem dos becos e ecoam para além dos muros invisíveis, que dividem as classes sociais.
Neguinho do Kaxeta, uma lenda do funk, completa essa sinfonia de resistência. Ele usa sua arte para chamar a atenção para a paz nas favelas, uma paz que parece tão distante para aqueles que vivem na marginalidade. O funk escrito por ele é uma espécie de encantamento, que busca transformar o medo e a violência em esperança e coesão. Através da sua música, ele oferece uma válvula de escape coletiva que desafia o sistema, transformando o grito de guerra em um chamado pela paz.
Galeano, com sua visão crítica e poética, parecia estar ouvindo a batida do funk que ecoava através das paredes do tempo. Os colonizadores e as figuras históricas dos seus livros tinham uma voz que ressoava através dos séculos. Então a batida, que reverbera nas favelas, é o grito da contemporaneidade, um grito que desafia a opressão do presente.
O uruguaio desbravava as feridas abertas com seu olhar analítico e apaixonado, Hariel e Kaxeta fazem o mesmo, mas através do som e da energia do funk. Eles desenham uma nova paisagem, onde a luta por justiça se encontra em um coro de batidas e versos. É como se a história escrita e a realidade vivida se encontrassem em um ponto de convergência, onde as vivências do passado e o presente dançam para transformar a realidade.
Na interseção entre o jornalismo literário de Galeano e as letras do funk consciente, a América Latina se mostra em sua plenitude: uma tapeçaria rica de histórias de opressão e resistência, um palco onde a luta pela justiça não tem fim, mas que sempre encontra novas formas de se expressar. Entre a literatura e a música. Entre a memória histórica e o grito do presente. Entre um dos maiores escritores da América da Latina e os dois maiores expoentes do funk.
Luan Chechi é estudante de Jornalismo, compõe a equipe de estudantes do PET-Saúde Equidade e participa do Grupo Gabo de Pesquisa desde 2023.