Todos os contos pandemônicos
Revista Jornalismo & Ficção
atualizado 5 meses atrás
Diante do mundo caótico que se apresentou durante a pandemia da Covid-19, o Grupo Gabo de Pesquisa lançou o CONCURSO DE CONTOS PANDEMÔNICOS, no Dia das Bruxas, em 31 de outubro de 2020. Os integrantes da equipe produziram minicontos para este acervo digital.
A história do gato branco
Duda Paloco
Um miado ecoava pelo seu crânio, a fim de quebrar seus ossos. Levantou para anotar o sonho da noite. Procurava por seus dois cadernos, mas suas mãos enrugadas só encontraram um. Palavras na frente de datas: GATO BRANCO, DECOMPOSIÇÃO, RUÍDOS QUE ARDEM. Nada ali fazia sentido. O dia marcado contava sete meses, desde o começo da quarentena. Resumiu o sonho, mas não se lembrava dos dias, isso cabia ao outro caderno. Se questionou por onde estaria. Mergulhou em ansiedade. Não demorou muito para a casa estar revirada. O corpo nada ágil de 65 anos, envolto pelo desespero de alguém sem memória, ansioso por uma gota de lucidez. O espaço foi tomado pela bagunça; pelo mesmo som que preenchia seu crânio naquela noite.
O miado vinha da cozinha. Com olhos cortantes e frios: o gato branco. Era impossível ter entrado, tudo estava fechado. Lembrou das palavras no caderno. Palavras macabras. Passou a mão no rosto como se elas pudessem acordá-lo, caso estivesse dormindo. No espelho do banheiro se viu desmanchando, machucado e podre. A amnésia roubava sua vida a cada três dias, mas a terapia e os remédios o ajudavam. Hipocondríaco, não saia desde o início da pandemia do covid-19. Então, durante o isolamento, anotava a vida aposentada e solitária em um caderno e seus sonhos em outro.
Mas naquele instante, frente à sua imagem, o olhar tíbio para si mesmo, a realidade fez-se incógnita. Seria o caderno dos sonhos o diário da realidade? Estaria delirando o tempo todo e se acostumado com isso? Ou, aquela madrugada era apenas um devaneio, um pesadelo? Sozinho a tanto tempo, uma visita, mesmo que de um gato não seria ruim. Voltou para a cozinha e se deparou com o bichano vomitando todo o papel, a tinta desfeita, apenas borrões de sonhos ou realidade. Nessa altura tudo já se misturava. Na manhã seguinte, não havia gato, nem papel. Mas, o cheiro do vomito penetrava seu nariz, sem identidade, com um único caderno para contar o dias, ou os sonhos.
Casa verde
Blasco Opala
Olhos me sondam quando a noite toca a carne da lua. Três dias entorpecido em pensamentos hostis na quarentena. Ao passar mais tempo, aqui as coisas não são as mesmas. Estou preso na casa verde. Em maio vi minha imagem distorcida em cores metálicas através de sonhos. Um sabor denso da perturbação. Me queimei por dentro. Depois, o medo fugiu dos sonhos e se materializou. Agora a sombra metálica caminha nos cômodos, depois da meia noite, me encarando.
Ouço ruídos das aranhas no telhado. Ando pela casa na esperança de encontrá-las. Talvez o veneno aracnídeo cure minhas alucinações. Elas não aparecem. Apenas ruídos. Vez ou outra, gritos de uma mulher. Distante, mas presente. Como se estivesse dentro da casa, enterrada. Não me surpreenderia. Deito, tomo quatro gotas de floral. Busco por um sonho tranquilo. Fecho os olhos. Desta vez nada de aranhas ou gritos. Na porta, entreaberta, vejo um cavalo preto andar pela sala. Caminho em direção ao banheiro em passos lentos.
As aranhas voltaram. Os gritos vêm de baixo. Ouço meu nome em sussurro. Fecho os olhos. Aos poucos um emaranhado de mãos sai do alçapão e tentam me tocar. Derrubo o floral e corro para fora. No quintal, sigo a luz da lua que me cerca. De repente, a luminar se torna um rosto. Me encara perturbada. Ruídos e gritos. Mãos saem da caixa de cartas. O cavalo, desta vez ao meu lado, como se ali estivesse o tempo todo. Acordei. São quatro e cinquenta da manhã. Vou à cozinha. Acendo a luz e vejo o cavalo preto.
O mistério que cercava Cidadevânia
Isabelle Teixeira
Amanheceu um dia nublado. Sarah morava com sua mãe na pequena Cidadevânia. Viviam com uma aposentadoria. A jovem começou a sonhar coisas estranhas. Um medo passou a persegui-la. Calafrios a incomodavam. Conversou com sua mãe, que lhe contou histórias inusitadas do lugarejo. Há quinze anos, no verão, jovens desapareciam e voltavam sete dias depois. Sem explicação alguma.
Os boatos diziam que os jovens iam para um lugar desconhecido, outro planeta ou galáxia, não se sabia. Sarah se espantou, mas continuou calada. A mãe prosseguiu: deu detalhes das viagens que os jovens contavam ao retornar: animais falantes, criaturas horrendas de estimação, elfos e lobisomens, que viviam pacíficos, lá no mundo deles. Cada um com suas particularidades. Nesses dias, a energia da cidade ficava pesada. Dias como esses, nublados e com sentimentos ruins, eram comuns.
A jovem sentiu-se triste por esses sumiços não aconteciam mais. Pois, não poderia correr o risco de conhecer tais coisas. Mas, a curiosidade em saber consumiu Sarah. Andou pelas redondezas conversando com pessoas mais velhas para entender o por quê desses acontecimentos não ocorrerem mais. Sarah foi ligando os pontos. Os seres fantásticos abduziam, em dias nublados, pessoas com vinte anos. Amanhã é o aniversário de Sarah.
Dopaminérgico
Samir El Kadri
Li uma vez que a esquizofrenia é relacionada ao desequilíbrio de um neurotransmissor, chamado dopamina. Mas essa informação, é claro, eu vi antes do isolamento. O que mais tem me ocupado recentemente é a presença “dela”. No início da quarentena, refleti sobre o quanto a sua irmã é retratada por diversos tipos de narrativa, muitas vezes com uma caracterização típica, vestido uma capa preta e segurando uma foice. Mas “ela” ninguém ousa representar, mesmo com uma presença tão marcante.
E foi neste convívio, tão intenso, que pude observá-la melhor nos últimos meses. Realmente, é muito bela, como tanto dizem. Mas a frieza no seu olhar indica mais do que uma indiferença, como outros dizem. Consegui enxergar uma crueldade.
Me apresentava cartas que estranhamente chegavam por um buraco na fiação da parede, as quais eu ignorava.
Ao perceber o meu olhar de indignação por ter descoberto seus males, passou a me agredir. Me defendi usando a força, mas quanto mais eu revidava, mais forte “ela” ficava. Nesse vaivém, vi meu corpo entrar em fadiga e desabar, como um edifício em demolição. No chão, pude observar o quanto estava ferido. O susto me fez recuar. Implorei por ajuda, mas “ela” não sentiu a menor compaixão. Porém, também recuou. O olhar agressivo passou a ser mesmo indiferente. Assim, pude respirar em paz.
Passado um período tépido e enfadonho, me apresentou novamente as cartas. A ansiedade no seu olhar me apressou, fazendo com que lesse todas simultaneamente. Nesse fluxo, sem perceber, uma delas me prendeu. Li sem ver o tempo passar e passei a sorrir. A minha empolgação se tornou a “dela”, e quando decidi responder a carta, “ela” me avisou com euforia sobre o fim do isolamento. Então, ao sair, percebi o quanto ler as cartas era uma experiência rasa perto de ver, cheirar, ouvir, degustar e tocar. Olhava para o lado e me aliviava não vê-la mais, apenas senti-la.
Terceiro grau
Hiury Pereira
Preferiria abdicar dos meus sentidos a reviver aquele momento. Caído, ele havia desmoronado ao apagar as chamas do nosso velho sofá. Quem seria capaz de conter a brasa com um litro de álcool? O fogo não só aumentou, como avançou e consumiu todo o seu rosto.
Em cinco segundos, a definição palpável de angústia: o grito de dor do homem teve timbre e decibel de um porco abatido. Sua face se decompôs em carvão. Desabou no chão. O fogo se desfez no mesmo instante. Os dentes eram o único aspecto conservado da feição carbonizada. O grito se transformou em ranger.
O odor de sua pele tostada deu ânsia. Tive esperança de que ainda estivesse vivo, mesmo com o rosto desfigurado. Levei minha mão ao seu queixo, de forma instintiva. O mesmo instinto recolheu minha mão. Despertei as labaredas com meu toque. O fogo voltou a arder no sofá e em seu rosto.
Ele não estava ao meu lado na cama para ouvir sobre o pesadelo. Me recusei a dormir ao lado dele após a última briga. Disse que deveria dormir na sala e não mais olhar na minha cara. Nunca havíamos discutido daquela forma.
O amor não desapareceu, apesar de ameaças e xingamentos. Precisava me desculpar pelo “espero que você morra” quando fechei a porta em seu rosto. Palavras injustificáveis. Calcei os chinelos, enquanto meu pensamento já estava no abraço de perdão. Ao abrir a porta, o cheiro de queimado me paralisou. Perdi a força das pernas e, em lágrimas, fechei a porta. Espero que apenas esteja com carne na churrasqueira para me agradar.