Crônica de outra morte anunciada

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 5 meses atrás


Um belo exercício de transcriação. O povoado, os personagens e parte da história de Crônica de uma morte anunciada aparecem nesse texto. Trabalho realizado na Oficina Gabo de Leitura Criativa, em 2019, na Universidade Estadual de Londrina.

Hiury Pereira

“Cinco minutos depois, realmente, voltou ao Clube Social com os alforjes chapados de prata e pôs sobre a mesa dez maços de notas de mil ainda com as cintas impressas do Banco do Estado. O viúvo de Xius morreu dois anos depois. “Morreu disso”, dizia o doutor Iguarán. “Estava mais sadio que nós, mas quando a gente o auscultava sentia borbulhar as lágrimas dentro do seu coração”.

Gabriel García Márquez

É possível alguém morrer duas vezes e permanecer vivo? Desde o maldito dia do último sopro vital de Yolanda, duvidei que existisse alguma sensação mais parecida com o murmúrio do demônio da solidão em meus ouvidos. Por mais que tentasse me restabelecer entre as partidas de dominó e os porres de rum de cana, o meu único afago era voltar para casa e observar, da mesma poltrona, a morada da minha felicidade por mais de três décadas.

Por mais belo que seja o local, a origem do meu apego por cada detalhe não podia ser explicada ao contar as gotas de suor que gastamos ou apenas por ser considerada a casa mais bonita do povoado. Aquela morada mantinha vivo o que nunca morreu em mim: Yolanda.

Apesar de parecer loucura e de se tratar de uma revelação que nunca fiz a ninguém, Yolanda não vivia apenas em minhas lembranças dentro da casa. A alma de minha mulher fez do local o seu paraíso pós-morte. Por mais que eu apenas pudesse vê-la sem a permissão de tocar seu rosto ou sentir o doce aroma de sua carne, Yolanda estava toda madrugada ali exposta, em seu altar, das três da manhã até a aurora. O fim do meu turno de prazer diário sempre era anunciado pelo canto dos galos do povoado. Só então, após preencher novamente minha alma daquela que me fazia tanta falta, podia adormecer sem qualquer peso.

Na minha terceira noite de luto pela trágica morte de minha mulher, assustei-me com a sua primeira aparição. Ela estava ali, com os olhos embranquecidos e vestida de morte, com a esperança de ser admirada como nos nossos tempos áureos. Por conta do susto, não recebi bem a sua imagem. O vômito roxo de quem estava sem dormir desde o maldito dia foi a primeira reação. Quando tive certeza que não era uma alucinação, invoquei divindades e orei, com raiva e aflição, para expulsar o demônio que viera me atormentar. Não adiantou. Esperava ouvir o riso demoníaco, mas o silêncio da imagem de Yolanda esclareceu as minhas ideias: era ela.

Como o Messias, a minha salvadora ressuscitou no terceiro dia – apenas em espírito. A curta duração de seu esplendor noturno foi suficiente para me fazer recuperar a cor, o apetite e me fez dispensar todos os pensamentos suicidas dos primeiros três dias de luto. A madrugada se tornou a parte mais reluzente do meu dia. Para quem nunca mais veria a sua amada, um encontro diário de três horas é um motivo para voltar a crer na bondade divina. Também ressuscitei.

O tempo não foi capaz de apagar a magia de Yolanda. Porém, uma conversa durante uma costumeira partida de dominó trouxe a minha queda. Na mesa, estavam doutor Iguarán e o recém-chegado Bayardo San Román. Jovem e abastado, o novo morador das redondezas estava noivo da filha de Pôncio Vicário. Era admirado no povoado, mas senti o seu verdadeiro interesse quando veio até o Clube Social para jogar dominó. Se enrolou com as pedras e não demonstrou destreza no jogo. Quando percebeu o disfarce de jogador arruinado, se dirigiu a mim: “Viúvo, compro a sua casa”. Sem me ofender, respondi que não estava à venda. “Compro com tudo que tem dentro”, disse ele. Eu expliquei o apreço pelos móveis que comprei com a minha mulher. O homem não entendeu e recusei até o fim da partida.

Três dias depois, o jovem diabo retornou à mesa de dominó. Pediu que eu dissesse qualquer valor para a casa. Como estava a recusar muito dinheiro, disse que eles, jovens, não entendem as razões do coração. “Digamos cinco mil pesos”, ofereceu. Disse que estava louco, a casa não valia aquela quantia. O monstro dobrou a proposta. Com o coração entupido de avareza e prestes a aceitar, lembrei de Yolanda e recusei, com os olhos a escorrer as lágrimas da fortuna ao meu alcance. San Román se ausentou durante cinco minutos. Ao voltar, jogou em minha frente um deserto de dinheiro. Os jovens não entendem as razões do coração, mas o velho viúvo optou pelo dinheiro.

Se o dinheiro do povoado fosse contado e reunido, não chegaria perto daquela fortuna. Quando fui pegar os meus pertences, não me recordei que estava na hora de encontrar Yolanda. Peguei apenas meus documentos. Deixei móveis, decorações, presentes e o meu maior amor. Não me despedi, pois pensei que fosse me acompanhar. Quando vendi a casa com tudo dentro, não imaginei que a minha amada estivesse no pacote. Se viva, Yolanda aceitaria a proposta?     

Pedi a Bayardo um pagamento em parcelas. A ficha começou a cair quando, na minha nova casa, não havia lugar para tanto dinheiro. Arrumei a bagunça da mudança. Um pensamento floresceu: “Yolanda virá comigo? Qual será o seu altar?”. Não demorei mais de uma madrugada para enlouquecer e me arrepender amargamente da venda: ela não me acompanhou. Eu dormia em um travesseiro recheado com dinheiro. Não havia bem material que me trouxesse o prazer da primeira noite com minha esposa, o conforto de seus braços ou o alívio de vê-la com os olhos embranquecidos e vestida de morte. Morri com a sua morte, ressuscitei com a sua reaparição e voltei a perecer, quando preferi o dinheiro – que não necessitava – à mulher da minha vida.

Os noivos que habitariam a casa também caíram em desgraça. O homem descobriu a desonra da mulher na noite de núpcias. Assim que expulsa de casa, a pobre moça disse aos irmãos o nome de seu amante secreto. O garanhão foi estripado como um porco e os irmãos foram presos. Ao ver tudo aquilo, chorei e a tortura foi ainda maior. Toda a maldição no povoado é um grito de Yolanda. A minha mulher não aprovou a venda e feriu os novos moradores. Hoje, dois anos depois da maldita proposta aceita e do assassinato de Santiago Nasar, estou pronto para reencontrar a minha amada. Espero que no inferno não exista ouro.


Hiury Pereira é jornalista, pela Universidade Estadual de Londrina, e graduando em Geografia pela Universidade Estadual de Maringá, como estagiário, trabalhou na Folha de Londrina e na Rádio UELFM. Entre 2018 e 2021 participou do Grupo Gabo de Pesquisa.

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