Copa e tronco
Revista Jornalismo & Ficção
atualizado 1 ano atrás
A cabeça de uma mulher foi encontrada no tronco de uma árvore próxima do Açude das Águas Minerais, em Santa Rita, na Região Metropolitana de João Pessoa (PB), nas primeiras horas da manhã do domingo (10/4/2022). O conto abaixo inspira-se na realidade mágica do cotidiano.
Bruno Souza
Era Domingo de Ramos. A cidade toda se preparava para marchar com um galho de árvore nas mãos, em direção à igreja de Santa Rita. Maria foi a primeira a iniciar a peregrinação. Desperta desde as quatro da manhã, a dona de casa saiu para a celebração cristã sozinha, ainda no escuro. Como morava longe do destino, decidira sair com antecedência para pegar um bom lugar na missa.
Às cinco, ainda estava a alguns quilômetros de chegar. Passando pelo Açude das Águas Minerais, algo de estranho lhe chamou a atenção. Uma árvore. Um ramo na árvore. Um verde fosforescente que iluminava a, ainda, trevosa madrugada. Pensou: “Que coisa linda. Será um sinal divino?”.
Ao se aproximar, percebeu que, acompanhado da hipnotizante cor, o ramo também proferia um cântico angelical, deixando o seu temor ainda mais acentuado. Ela, com os olhos e ouvidos presos à árvore, não conseguia imaginar outra coisa a não ser recolher aquele ramo e levá-lo à igreja.
Quando chegou mais perto, teve outra experiência sobrenatural. Sua vida lhe passava como um longa-metragem na cabeça. Via suas primeiras bonecas, as amigas que tinha quando criança, o primeiro namorado, o parto do filho, os prazeres que gozara, os odores que sentira e, por fim, as dores que a marcara. Em um último relance, viu sua cabeça rolando ribanceira abaixo. Após alguns minutos em transe, acordou. Seus olhos voltaram a ser escravos da coloração verde vívida.
Espantada, decidiu abandonar a ideia de recolher o ramo. Tentou sair do local, não conseguiu. Mirando os olhos para o chão, viu os seus pés afundados na inóspita terra nordestina. Da batata de sua perna, saíam raízes que iam de encontro à terra. Estava plantada. Queria gritar, mas de sua boca brotavam pequenas orquídeas, que entrelaçavam sua língua.
O sol começava a nascer. Com os primeiros raios de luz atingindo o seu corpo, sentiu um prazer inigualável que passava pelas raízes de seus pés e chegavam às ramificações de seus cabelos. Estava tomada pela vegetação.
O galho que lhe chamara a atenção já não brilhava e nem cantarolava. Ele apenas se movia em direção a ela, enrolando-se por seu paralisado corpo e apertando-lhe o pescoço. Sua traqueia estava esmagada, mas não sentia falta de ar. A calorosa luz, proveniente do sol, parecia lhe conceder o que necessitava para ter vida.
Após alguns minutos, o ramo separou a cabeça da mulher de seu tronco, decapitando-a. Estava definitivamente morta. Já descartado no chão, o resto do seu corpo foi tragado pela terra como se fosse uma semente, afundando em direção às profundezas até ser encontrado por uma corrente de água, um lençol freático. Já a sua cabeça foi consumida pela árvore. Unira-se a um novo tronco.
Com o passar dos minutos, diversas pessoas transitavam pelo Açude, a fim de chegar à igreja. Mas ninguém deu por sua falta. O padre encerrou a missa e todos foram embora para as suas casas.
O corpo da mulher, após dias vagando pelas águas subterrâneas de Santa Rita, foi despachado no rio da cidade, sendo encontrado na Sexta-feira Santa por pescadores, em estado de putrefação. Só havia uma pergunta que a cidade não conseguira responder: onde estava a copa daquele tronco humano?
Estava envolvida pela árvore. As suas artérias retalhadas uniram-se às ramificações da planta. Dos seus cabelos, passaram a brotar galhos e folhas. Já em sua língua, as orquídeas seguiam encontrando um bom lugar para galgar, enquanto escapavam do interior do tronco em busca da saciante luz solar.
Fonte: Cabeça de mulher é encontrada em tronco de árvore na Paraíba.
https://www.metropoles.com/brasil/policia-br/cabeca-de-mulher-e-encontrada-em-tronco-de-arvore-na-paraiba
Bruno Souza é formado em Jornalismo na UEL. Incomodado pela maneira como as coisas estão dispostas no mundo, ingressou no curso aos 17 anos com o intuito de um dia poder dar voz aos silenciados. Produz contos, crônicas e poesias desde 2021. No concurso em comemoração aos 50 anos da UEL teve seu texto selecionado e publicado no livro físico Coletânea de Contos. E-mail: bruno.marcello@uel.br.