Balas passionais

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 1 ano atrás


Ao trabalhar como estagiário no Portal Bonde e no jornal Folha de Londrina, Bruno Souza teve a oportunidade de cobrir um assassinato que ultrapassa a realidade cotidiana. Uma mulher foi morta com um tiro na cabeça, disparado pelo seu ex-marido, enquanto prestava serviços à Paróquia São Luiz Gonzaga, em Londrina, no dia 05/04/2022. O repórter produziu um conto de realismo mágico.

Estourou-lhe os miolos. Sentia seu sangue jorrando pelo enorme orifício que havia em sua cabeça. Prostrada à porta da igreja, assistia ao seu ex-amor, alimentado pelo prazer de vê-la em tal situação, fugindo, pulando os muros enlodados da igreja onde trabalhava.

Ao anoitecer sua visão com um cansativo piscar de olhos, viu o caminho que traçara para chegar até ali. Desperta desde as 7h, varreu a sua casa, levou os filhos à escola, despediu-se. No caminho de volta, roubou uma fruta da árvore de sua vizinha, foi pega, desculpou-se em tom de ironia. Entrou em casa, abriu o celular. Mensagem do ex-amor, um poema para lhe “encantar”:


“Nossa relação é como um saboroso pão,
Daqueles que não perco uma migalha no chão,
Daqueles que não sobra um farelo pro cão,
Daqueles que sinto prazer em ter na mão.


Ter-te em minhas mãos não foi possível.
Vi que me apaixonei por uma mulher de outro nível.
Mulher que não se deixa mandar,
Mas que, para estar comigo,
Na linha terá que andar.


Tu me conhecestes assim.
Queres falar de amor para mim?
Eu que te ensinei a amar!
O melhor que fazes é a cabeça abaixar!


Tudo bem, tu não me queres mais.
Pode ir, viver sem mim tu não vais…
Dou-te cinco horas para voltar,
Ou com balas passionais irei te buscar”.


Fechou a tela. Estava decidida a deixar a relação tóxica. Para esquecer dos problemas, resolveu dormir. Perdeu o horário do almoço, não dava mais tempo de comer. Apressou-se para ir ao trabalho. Chegou à paróquia. Era devota, limpava tudo com o maior zelo. Em sua pausa, não acreditava no que via: o seu poeta perseguidor invadia a cozinha. Correu. Acordou do pequeno transe. Não sentia mais seu corpo. As moscas já pousavam sobre seu sangue fermentado no chão. Estava cansada, sentia-se tentada a dormir, mas sabia que, caso o fizesse, seria pela eternidade.


Piscou. Voltando à escuridão de sua mente, viu o dia em que conhecera sua desgraça. Era o amor da sua juventude. Um rapazote másculo, de corpo definido, pernas torneadas e lábia desproporcional a qualquer outro que já conhecera. Ela, no auge da beleza, encantou-o na mesma intensidade. Apaixonou-se. Não tinha mais volta. Seu ex-amor – na época grande amor – alimentava-lhe o coração com constantes palavras poéticas. Culto, queria demonstrar à sua amada que sabia a desejar em qualquer idioma:


“Mami, tenerte es como ser completo.
Sin ti no vivo, no camino, soy imperfecto.
Tú eres mi perdición, mi ilusión, mi delito.
Sin ti, mi alma llora, mi cuerpo no vibra,
Mi existencia es un mito”.

E, assim, namoraram, casaram e tiveram filhos. Mais do que um corpo, fora seduzida por palavras. De seus 38 anos, 20 passou ao lado daquele que roubou o restante dos seus dias. Mais alva que a neve, sentia seus lábios secos. Ouvia o som do socorro se aproximando, além das incessantes vozes inquietantes que acompanhavam seus últimos segundos de vida, em um constante empurra-empurra que se formava para conseguir o melhor ângulo da imagem monstruosa provocada pelos tiros passionais.

Só queria saber de seus filhos, mas, ao mesmo tempo, não queria que eles a vissem em tal situação. Não aguentava mais. A força que fazia para manter as pálpebras abertas era maior que qualquer coisa que já realizara na vida. A população não acreditava na cena que via. Metade de sua cabeça estava explodida, mas seguia desperta, sem render-se à eternidade. Pela última vez, piscou. Agora, via a sua mãe em um hospital. Estava em uma maca, suada. Fazia uma força descomunal para parir. Mantinha-se à beira da cama, segurando a mão da sua progenitora de estranha e bela aparência jovial. E nasceu. Ao analisar o rosto do bebê, viu que era si própria. Estava presente no seu próprio parto. “Que loucura”, pensou.


Viu nos olhos do recém-nascido o reflexo de sua vida. Enxergava o momento exato do disparo que lhe destruiu a cabeça: a bala se aproximava lentamente em sua direção. Nos segundos quase estáticos, viu o sorriso de fúria de quem tanto lhe dizia amar. Os olhos do poeta estavam tomados pelo ódio. Enquanto aguardava o projétil chegar ao alvo, sem poder se mover, ela sentia que nascera para aquele momento. Era o clímax de sua história, o auge de sua existência. O poema que transcrevia a sua vida foi encerrado pelo autor. E se rendeu à eterna escuridão.


Bruno Souza é formado em Jornalismo na UEL. Incomodado pela maneira como as coisas estão dispostas no mundo, ingressou no curso aos 17 anos com o intuito de um dia poder dar voz aos silenciados. Já produzindo contos, crônicas e poesias, começou, em 2021, a dedicar-se à área literária, arriscando-se no concurso feito em comemoração aos 50 anos da UEL, no qual o seu texto foi selecionado e publicado no livro físico Coletânea de Contos.

E-mail: bruno.marcello@uel.br

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