Apocalípticos desintegrados

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 1 ano atrás


José Maschio

Que maçada. Logo agora que estava tudo a correr como devia. Pensava e olhava para a mulher. Ela estava ansiosa. Queria notícias. Ao invés de responder, chamou o piloto. Que maçada. Urgia resolver isso. Depois se resolveria com a mulher.

Chamou o elevador. O piloto já tinha o helicóptero pronto. Em meia hora estaria na Quinta Avenida, sede da L.S. Tempo suficiente para inventariar a vida. Era orgulhoso disso de criar a L.S. Hoje, apenas cinco anos depois, sua empresa já era chamada de a décima sexta. No mesmo patamar que as 15 corporações que dominavam o mundo civilizado.

Recordava como tudo começou. Foi em 2020, quando o mundo e a geopolítica mundial entraram em colapso. Começou com a pandemia do covid19. Bendito coronavírus pensou. E riu. Era tudo uma questão de aprender com a história. E ele tinha aprendido. O sorriso, irônico, era para uma velha máxima atribuída ao velho Marx. A história se repete primeiro como tragédia, depois como farsa.

Não sabia se era assim mesmo a máxima. Mas tinha certeza. Aprendera com a história. Fora buscar, na história, as soluções que culminaram com sua Lasting Solution (LS). Uma história de sucesso. E agora essa, que maçada. Prático, ligou para a secretária e pediu para separar o lote 315. Assim que chegasse à empresa resolveria essa maçada. A solução pensada era simples. O problema era a mulher. Aflita, em casa.

Quando tudo começou era um assessor de diretoria na indústria farmacêutica. Em Nova Brunswick (Nova Jersey). Nada importante. Mas o colapso mundial fora benéfico. Primeiro a pânico mundial com o covid19. Depois a guerra do petróleo. Os governos fecharam fronteiras. Suspenderam eventos esportivos e culturais. E a coisa alastrou-se de tal forma que os governos perderam o controle.

Foi aí que as 15 grandes assumiram. As grandes corporações, farmacêuticas, do petróleo, de armamentos e da tecnologia de informação resolveram assumir o controle de fato. Já controlavam exércitos e países com títeres eleitos por fake News. Decidiram que não precisavam mais de intermediários. E o mundo mudou. Na América foi fácil. Bastou transformar o muro de Trump em uma barreira maior e instransponível. A parte latina da América isolou-se em sua selvageria.

E mais fácil ainda foi controlar possíveis revoltas. No plano interno foi regularizar os ilegais. E esses esqueceram qualquer revolta. E também esqueceram seus parentes ao sul. No plano externo foi deixar os cristãos fundamentalistas assumirem o controle dos governos cucarachas. Eles acreditavam em tudo que o norte informava.

Na Europa o problema maior foi aquilo que antes chamavam de França. Os imigrantes lá eram mais conscientes de sua história. Foi preciso ser duro. Extermínio étnico foi necessário. Não que alguém reclamasse. A antiga França voltara a ser mais branca e asséptica. E o resto da Europa fechou os olhos para o genocídio.

Entrave foi na Ásia, com a antiga Pérsia. A Federação Russa e a China quiseram reagir. Mas as corporações foram ágeis. Rússia e China receberam encomendas bélicas suficientes para se calarem. E a nova ordem econômica e social foi instaurada. No que foi a Pérsia dizimada sobraram hordas selvagens. Que nada incomodavam. A elite da Índia, uma país de castas, estava alinhada com as corporações. Não houve problemas.

As corporações foram buscar na história uma decisão sobre a África. Ao invés de dividirem geograficamente o continente, como no século 19 para 20, a medida foi outra. Unificaram o continente sob a tutela europeia. Com tecnologia e poder bélico, o continente negro foi separado do mundo civilizado. Assim como os latinos na América.

E as populações desses continentes foram entregues à própria sorte. Com as elites locais controladas por notícias falsas. Mas as corporações sabiam, esse controle era precário. Seriam necessárias medidas perenes. De controle dos desintegrados pela nova ordem mundial. Foi quando ele apareceu com sua Lasting Solution. E fora quase por acaso.

Em reunião na empresa farmacêutica, a maior da América, havia um impasse. Os pesquisadores reclamavam da falta de cobaias. O pessoal das relações públicas temiam os defensores dos animais, em campanha contra o uso de cobaias. Ele quase nunca opinava nas reuniões. Cônscio de sua função de assessor acessório. Mas naquela reunião foi diferente. A história nos ensina, disse. Todos se voltaram para ele. Ele lembrou a todos a experiência da IG Farben, no século 20. O uso de cobaias humanas pelos nazistas na década de 30 do século passado.

Os executivos reunidos reprovaram sua fala. Menos o CEO da empresa, que pediu mais detalhes. Ele explicitou. E ainda reforçou. A IG Farben hoje era uma das quinze grandes. A Bayer. A história havia perdoado o gigante europeu. Alguém ponderou. Os ativistas protestam contra animais como cobaias, imaginem usar humanos. Ele riu. Não seriam humanos do mundo civilizado. Seriam os de fora. Os desintegrados. Chamados pela sigla T.O (Those Outside).

Como fazer era o problema. Ele deu a solução. Nos territórios T.O, os de fora eram suscetíveis a reality shows. E as mídias locais dos desintegrados eram colonizadas. Faziam tudo que as corporações mandavam. Vamos criar um pogrom para isso. E a história ajudou novamente. Lembrou aos executivos o pogrom czarista de 1903 contra os judeus. Fariam um pogrom diferente.

Ao invés de genocídio, esperança. E foram criados programas de esperança para os T.Os. Reality Shows específicos. De acordo com as necessidades da indústria farmacêutica. Os de fora chegavam cheios de esperança. Depois de usados, eram descartados. Ninguém se importava no mundo civilizado. Lá, no mundo dos T.Os, esses eram invejados. Queriam ter a sorte daqueles que foram.

A ideia foi bem aceita. O sucesso foi tanto que ele deixou de ser assessor. Criou sua Lasting Solution. As demandas das farmacêuticas se ampliaram para outros setores. O setor de diversões foi o que mais prosperou. Havia necessidade de prazeres. E lotes de jovens adolescentes começaram a serem requisitados. Para os prazeres da carne. Os lotes chegavam, passavam por uma quarentena e entregues aos clientes. E a clientela só aumentava.

O poder embriaga. Ela sabia. Mas ele gostava disso de poder. E foi buscar na história exemplo para isso de exercitar o poder. Lembrou-se de um ditador cucaracha. De nome Stroessner que, pervertido, mandava sequestrar adolescentes. Para seu prazer carnal e de seu séquito. Comentou na reunião com sua diretoria, meio a brincalhão, meio a sério. Mas era ele que falava e seu séquito aprovou a medida. Decidiram, trariam lotes para deleite do grupo diretivo. Depois de usados, esses lotes seriam encaminhados aos clientes. Lotes de meninos e meninas. E logo agora essa maçada para resolver.

A maçada era uma adolescente do lote 315. Viera do que antes chamavam de México. Na partilha do lote, uma menina o atraiu particularmente. Havia algo nela de familiar. Usou-a. E era fácil usá-las. Elas eram dopadas de maneira a ficarem dóceis e excitadas. Um deleite. Pensara em segurar a menina por mais tempo. Mas no café da manhã com a mulher, ela virou um problema. Ele tinha que se livrar do problema.

A mulher fora casada antes. Tivera uma filha. Que na divisão do mundo, ficara com os avós paternos no México. Era uma obsessão da mulher. Trazer a filha para a civilização. Ele prometera que faria isso. Quando chegou à empresa compreendeu que nunca poderia cumprir a promessa. A adolescente do lote 315. Agora sabia a razão. De achar algo familiar na jovem. Chamou o executivo que mais confiava. O mais servil.

Sabemos todos, executivos não pensam, executam. E deu a ordem. Todo o lote 315 deve ser descartado. Descarte era a palavra usual para incineração. Destino final de todos os de fora que entravam no mundo civilizado. Depois de usados, eram levados para as usinas de produção de energia. Corpos incinerados a gerar energia. Qual bagaço de cana no mundo de antes. Duas horas depois o executivo voltou. Tudo feito. Ele agradeceu. Coçou os ralos cabelos. Pensou na mulher. Aflita. A esperar notícias da filha. Arrumaria uma desculpa. Depois pensaria. O importante é que tinha se livrado dessa maçada.


José Maschio, um repórter que conta histórias. Na vida fez de tudo. Até coisas bem-feitas. Foi catador de osso (em um tempo que usavam ossos para fazer botões), boia-fria, pacoteiro, bancário, professor universitário. Trabalhou em redações de jornais alternativos, jornais legais e jornalões. Hoje dedica-se à militância social e a escrever livros. Os dois últimos: Crônica de uma grande farsa (em parceria com Luiz Taques) e o romance Tempos de cigarro sem filtro. E-mail: josemaschio@gmail.com

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