A morte de Laureano Pontes
Revista Jornalismo & Ficção
atualizado 1 ano atrás
Para ler com sotaque gaúcho, a história mostra o destemido Laureano Pontes que “tinha cometido a maioria de seus crimes de morte, alguns com requintes de crueldade”. Este conto faz parte do livro VACA PRETA EM NOITE ESCURA, da editora Thoth.
Elizandro Pellin
O povo se aglomerava na entrada do improvisado salão onde corria frouxo o matinê naquela tarde de domingo de 1969. O som de gaita e violão entremeado com gargalhadas e vozerio, ecoava distante nas matas às margens do rio Santo Antônio.
No interior do casarão, de peroba coberto com tabuinhas de pinheiro lascadas, casais dançavam entusiasmados.
Na porta achava-se o cobrador de entradas – que também fazia as vezes de segurança -, sentado num cepo, fumando grosso palheiro. Dentro, no lado oposto aos músicos, equilibrados sobre uns caixotes à guisa de palco, ficava a copa, tendo por balcão uma tábua acomodada sobre tocos e dois atendentes vendendo cachaça e cerveja à temperatura ambiente.
A algazarra do lado de fora foi interrompida quando se ouviu forte tropel e surgiram dois cavaleiros, de pronto reconhecidos.
Era o temido Laureano Pontes, famoso por bandido e buscador de confusão, montado num tobiano marchador bem encilhado, ladeado por seu genro Placídio Lara, também mal falado, num rosilho fogoso escarceando o freio.
A medida que se aproximaram, as pessoas se afastavam entre sussurros e cochichos:
– Chegô o Laureno Ponte! Terminô a festa…
– O Laureano Ponte!! Vai dá briga!
As mocinhas de família, mais que depressa começaram a se retirar. Sabiam que caso recusassem um convite pra dançar partido de qualquer dos recém chegados, poderiam ter suas madeixas aparadas por um talho de adaga em resposta ao “carão”, além de envolverem pais, irmãos ou mesmo namorados em situação humilhante ou perigosa.
Laureano Pontes era moreno “cor de cuia”, grisalho e sem barba, aparentava mais ou menos sessenta anos. Estatura média e esguio, vestia bombacha e botas pretas com ruidosas esporas, guaiaca e camisa azul. O chápeu, também preto, com abas frontais torcidas e presas pelo barbicacho, pendendo em seu punho esquerdo um relho tipo “rabo de tatu”.
Placídio Lara, devia estar na casa dos trinta anos, moreno, baixote e rechonchudo, de vasta cabeleira negra besuntada de brilhantina e grossas costeletas. Vestia calça de brim acinzentado, camisa cáqui e botas marrons de cano sanfonado.
O temor que a figura de Laureano Pontes despertava, ao menos naquela fronteira, era baseado muito mais em boatos, em “ouvir dizer”, que propriamente em fatos. Na verdade ninguém dali havia testemunhado nenhuma das barbaridades que lhe atribuíam.
Laureano havia aparecido há menos de dois anos, vindo de Campo Erê, Santa Catarina, onde, contavam, tinha cometido a maioria de seus crimes de morte, alguns com requintes de crueldade.
Falavam de sua pontaria certeira, da rapidez no gatilho, das encarniçadas peleias e tocaias. Comentava-se à boca larga que viera para a fronteira como fugitivo da justiça e dos inimigos.
Talvez a conjuntura de andar sempre armado e bem montado, bebendo e gabando-se pelas bodegas, somada às fofocas, foram determinantes na criação da aura de temor em torno de sua figura.
Se era um facínora perigoso nunca se soube ao certo. Mas, conforme ensina a sábia filosofia popular: Quem faz a fama deita na cama.
A dupla amarrou os cavalos em árvores na frente de pátio, sem desencilhar. Com cara de poucos amigos e ares de que sabiam e se deliciavam com a apreensão causada, dirigiram-se ao salão.
Se aboletaram no balcão da copa e pediram cerveja. Permaneceram bebendo e observando a dança que aos poucos foi sendo retomada.
Placídio Lara já sentia as faces afogueadas pelo álcool, quando o trio de músicos rompeu numa sofrível execução do vaneirão Chico Guedes, da famosa gaiteira Jeanette “a rainha do acordeon”, bastante popular à época.
Não pestanejou em escolher uma prenda e sair dançando apertado, exibindo ostensivamente uma enorme faca Coqueiro atravessada na cintura.
O par passou a ser o centro das atenções.
Ocorre que a parceira escolhida era casada. O marido, um jovem moreno, feições de bugre e bigode ralo, de nome João Maria, observava a cena incomodado e inquieto, postado em pé ao lado da copa onde seu pai Teodoro Ferreira era um dos garçons.
O casal seguiu rodopiando sem parar durante três ou quatro marcas. O varão segurava a cintura da dançarina com ambas as mãos, que
insistiam em escorregar para as nádegas, sem qualquer reprimenda ou demonstração de desconforto pela moça.
Terminada a dança, Placídio Lara deixou a parceira e voltou para a copa, onde Laureano Pontes continuava bebendo isolado e sério.
Pediu outra cerveja, pegou dois copos, encheu-os lentamente e com um em cada mão dirigiu-se para outra ponta do balcão onde estava João Maria.
– Tome um gole! Disse quase ordenando. João Maria responde
– Não quero.
No que foi prontamente retrucado:
– Quem não dança e não bebe, intão paga cerveja!
– Pagar com que!? Questionou o outro num tom altivo.
– Seu carniça! Não presta pra nada e ainda é mitido a valente!
Gritou Placídio Lara.
Mal terminou a frase e João Maria investiu de faca em punho sobre o ofensor, que se esquivou com destreza manoteando sua coqueiro.
Ouviram-se gritos apavorados do mulherio e a música parou de supetão. O povo estourou em disparada rumando a porta, derrubando o que havia na frente, uns sendo pisoteados outros saltando pela janela, enquanto os rivais, em guarda, olho no olho, se movimentavam em círculo, como a estudar o adversário e traçar a melhor estratégia, como galos de rinha num início de combate.
Então se entreveraram, fazendo retinir o choque das armas brancas misturado ao fragor da turba em debandada.
Placídio Lara granjeou pequena vantagem sobre seu adversário, fazendo-o saltar para o terreiro acossado por saraivada de golpes que eram rebatidos já com dificuldade.
Laureano Pontes, surgiu logo atrás, de punhal na mão direita e “rabo de tatu” na esquerda, seguro pelo ponta para golpear com a argola, na clara intenção de também atacar João Maria.
Os presentes já contavam certa a morte do rapaz nas mãos da dupla, quando seu pai, Teodoro Ferreira, até então impassível e desarmado, pulou o balcão da copa e deu de mão numa enxada que havia sido usada no dia anterior para capinar os arredores do salão e deixada por descuido do lado de fora, partindo cego em defesa do filho.
Teodoro Ferreira era um homem franzino, já velhote, avesso a confusões, gozava do apreço e respeito da vizinhança, considerado honesto e trabalhador. Estava ali na qualidade de colaborador do evento, programado para ser uma tranquila confraternização entre vizinhos.
Entretanto a inesperada ocasião se apresentou a Teodoro Ferreira, magra, feia e mal vestida.
Sem tempo para conjecturas ou negociações, com o filho prestes a sucumbir acossado pelos temidos desordeiros, talvez o coração de pai tenho sido a mola propulsora da coragem e determinação que se apossaram de Teodoro Ferreira.
No primeiro golpe atingiu em cheio Placídio Lara, no lado direito do pescoço, tombando-o desfalecido e já fora de combate.
Laureano Pontes, quiçá surpreso pela inusitada e fulminante reação, agora em desvantagem de armas e tendo a atenção de Teodoro Ferreira voltada para si, começou a afastar-se pra trás, com rapidez, de punhal em riste e sem perder de vista seu adversário, enquanto rumava para seu cavalo, em cujo pessuelo estavam dois revólveres empanturrados de balas, conforme depois verificou-se.
Mas aquele era o dia em que o universo conspirava em favor do pequeno Teodoro Ferreira.
Laureano Pontes, andando pra trás, enroscou as esporas numa ondulação do terreno e caiu de costas. A enxada de Teodoro atingiu-lhe em cheio a testa, quase no mesmo instante em que o corpo em queda tocava o solo, fazendo saltar longe o chapéu preto.
Seguiram-se segunda e terceira enxadadas, acompanhadas do som mouco de ossos se partindo sob a carne, enquanto Laureano Pontes, já sem reação, se contorcia em espasmos.
Com os oponentes neutralizados , Teodoro Ferreira e seu filho João Maria, ainda resfolegantes, partiram ligeiros estrada afora, espionados de soslaio pelo povo que se esparramara entre as árvores.
Passado o perigo, gente assustada brotava dos mais inusitados esconderijos, aos poucos, se aproximando dos corpos estendidos.
Placídio Lara permanecia desacordado e imóvel, respirando com muita dificuldade, numa espécie de ronco engasgado e chiado. Laureano Pontes estava morto com a cabeça em frangalhos.
A noite há muito havia avançado quando o inspetor de quarteirão chegou para realizar seu trabalho. Em seguida, apareceu um Jipe, muito raro naqueles cafundós, que transportou cadáver e ferido amontoados.
Placídio Lara sobreviveu e anos depois foi morto a tiros por um parente em Santa Catarina.
Repetiu-se às margens do rio Santo Antônio a universal e recorrente história de Davi e Golias, onde o suposto fraco, em improvável façanha sobrepuja o forte.
Elizandro Pellin é advogado, formado pela Universidade Estadual de Londrina. Exerceu as funções de presidente da Subseção de Londrina da Ordem dos Advogados do Brasil. É apresentador e produtor do programa radiofônico Sons do Minuano, que vai ao ar pela na Rádio UELFM aos domingos às 11hs.