Relato de um náufrago

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 6 meses atrás


O repórter García Márquez descobriu a verdadeira história do naufrágio que lhe renderia um belíssimo livro-reportagem. Gabo produziu uma série de textos jornalísticos, em formato de folhetim, para o jornal EL ESPECTADOR, em 1955. Abaixo uma adaptação/versão resumida da história na pele do náufrago. Série folhetinsta divulgada em julho de 2021.

Caroline Souza

A Colômbia tem um novo herói

Ele não é escritor de realismo fantástico e nem cantor de vallenatos. Seu nome é Luis Alejandro Velasco, um simples marinheiro. Seu grande feito não foi acertar a bola no gol em um grande campeonato, tampouco defender os seus de um cartel inimigo. O novo herói da Colômbia chegou ao topo vindo de baixo, lutando para sobreviver em um mar de fome, sede e solidão por dez dias.


Velasco recebeu admiração, dinheiro e a atenção das mais belas mulheres. E ao perceber que não seria famoso por muito tempo, teve coragem de dinamitar a própria estátua para ficar eternamente – seja como herói, seja como vilão – na história colombiana.

1. Enquanto nos divertíamos

Enquanto levávamos nossas namoradas para tomar sorvete, o cabo Miguel Ortega guardava cada centavo ganho. Enquanto nos deliciávamos com as estreias no cinema, ele talvez se entretivesse com os próprios pensamentos e planos para a sua volta a Cartagena. Enquanto bebíamos em nossa despedida no bar Joe Palooka, ele talvez calculasse a soma dos presentes que comprou para a esposa: uma geladeira, uma máquina de lavar automática, um rádio e uma estufa. E enquanto a mulher de Ortega esperava desesperadamente por notícias do marido depois de saber do naufrágio, ele estava morto nas profundezas do mar.

2. Um baile mortal

Para a direita, para a esquerda. Rostos colados, assim como os nossos corpos. Era assim que nós marinheiros dançávamos vallenatos com nossas namoradas e esposas. As músicas, que falavam de outros casais apaixonados, enchiam de amor as festas colombianas daqueles tempos. Na noite de 27 de fevereiro, fomos convidados pelas ondas a dançar mais uma vez. O destróier Caldas ia para a direita, para a esquerda. Para cima e para baixo. O baile começou devagar, mas animado o suficiente para nos causar enjoos. E ao fim dele, no dia 28, rostos e corpos envoltos pela água do mar. Não havia mais geladeiras, estufas ou sonhos para nos agarrarmos. Só ficou o silêncio.

3. Éramos dois

Ela estava ali. E como o rio corre para o mar, eu a busquei. Tal qual um filho que quer o colo materno, eu lutei para chegar até ela. Outros companheiros fizeram o mesmo e me confortava saber que estávamos todos na mesma situação. Luís Rengifo, Júlio Amador e Eduardo Castilho caçavam-na sabendo que disso dependiam suas próprias vidas. Talvez por um presente dos céus, fui o primeiro a alcançá-la. E por um castigo dos infernos, fui o único. “Gordo, reme para este lado”, diziam meus irmãos marinheiros. Tentei obedecer, mas perdi a luta para as ondas e ventos contrários. O silêncio voltou, mas agora éramos dois: a balsa e eu. Era exatamente meio-dia e eu calculei que me resgatariam dentro de duas ou três horas.

4. Acompanhado pela Ursa Menor

Enquanto avistávamos a Ursa Menor, costumávamos cantar boleros pela madrugada de Cartagena. Ramón Herrera imitava o cantor Daniel Santos e era sempre acompanhado por alguém no violão. Em minha primeira noite no oceano, não tive a companhia da voz firme de Herrera, tampouco dos dedilhados do violão de outrora. A Ursa Menor, entretanto, continuava a ilustrar o céu e fez com que me sentisse menos só.
Com o amanhecer, avistei um ponto negro que avançava. Minutos depois, enxerguei a forma brilhante e veloz de um avião. Tirei a camisa e permaneci com ela na mão, pronto para agitá-la assim que se aproximasse. Em seguida, a calmaria do meu corpo deu lugar à agitação em ser resgatado. O barulho das ondas, por sua vez, foi substituído pelo profundo ruído dos motores.

5. Chegando ao porto

Agitei a camisa desesperadamente até perceber que o avião não havia me visto. Outros dois aviões passaram por mim. A certeza de que me resgatariam invadiu o corpo cansado. Horas depois, fui dominado pela aterradora sensação de abandono. O céu escureceu, mas eu não podia dormir tamanho o esgotamento. E foi em meio às trevas, enquanto me coloquei a olhar para a escuridão, que vi Jaime Manjarrés. Após conversarmos sobre os últimos momentos no navio, ele me disse que estávamos chegando. Pedi para que me ajudasse a remar, mas então percebi que o marinheiro não estava lá. As luzes do porto eram, na verdade, os primeiros raios de sol. A minha solidão e eu, sozinhos em nosso terceiro dia no mar.

6. Ao alcance das mãos

Ela era pequena, do tamanho da minha mão. Voava em torno da balsa e pousava, inocente. Minha boca se encheu de uma saliva gelada. Era aquele o meu quinto dia no mar. Apesar das batidas aceleradas do meu coração, permaneci imóvel enquanto ela se aproximava. O céu se fazia brilhante e maltratava a vista, mas como eu me permitiria piscar naquele momento? Não se tratava de um marinheiro buscando uma gaivota, mas um moribundo em busca da salvação. Meia hora depois, ela pousou em minha perna. Nem mesmo uma forte bicada no joelho ferido me tirou a obstinação em pegá-la. Foi quando ela foi para a perna esquerda e, imperceptivelmente, comecei a deslizar a mão.

7. Sete gaivotas perdidas

Já era tarde quando a pequena gaivota percebeu o perigo. Seu voo foi abruptamente interrompido por minha mão em suas asas. Enquanto a tinha ali, entre meus dedos, me lembrei de que não era digno de um marinheiro matar uma gaivota.

Atirei aquele punhado de penas e ossos ao mar. Até então, eu havia buscado forças para continuar. Hora após hora. Dia após dia. No sexto dia, entretanto, me dei conta de que eu era um morto na balsa. Ninguém estava me procurando. Foi quando dormi profundamente por longas horas depois de sete dias de insônia no mar. No horizonte, sete gaivotas perdidas confirmavam que eu estava cada vez mais distante da salvação.

8. Duelando com um tubarão

Nós dois estávamos entre a vida e a morte: o peixe verde e brilhante que havia entrado na balsa ao fugir de um ataque de tubarões e eu, que precisava matá-lo naquele mesmo instante para sobreviver. Eu sabia, entretanto, que a balsa poderia virar com golpes desordenados. Desci o remo com todas as minhas energias e pude sentir o cheiro do sangue que coloriu a balsa. Os tubarões também sentiram. Com cuidado, comecei a abrir o peixe e arranquei o primeiro bocado da sua carne. Na segunda mordida eu já estava farto.

E assim como quem guarda um tesouro, resolvi embrulhá-lo para ter alimento nos próximos dias. Antes disso era preciso lavá-lo, então coloquei a mão para fora inocentemente. Ao sentir a investida de um tubarão, apertei o rabo do peixe com todas as minhas forças e o defendi tal qual uma fera. Não foi o suficiente. Ele levou o peixe e todas as minhas esperanças. Revoltado e ignorando o estrago que ele poderia fazer ao meu braço, desferi um golpe de remo em sua cabeça. Ele se voltou furiosamente e deu uma mordida, despedaçando e engolindo metade do remo.

9. Uma missa pela minha alma

As ondas eram mais fortes do que as de 28 de fevereiro, dia do naufrágio. Me sentia desamparado dentro da balsa, que mais parecia uma casca de ovo em meio ao mar agitado. Primeiro, uma grande onda emborcou a balsa e precisei nadar pela vida até alcançá-la.

Meu coração pulava no peito e eu não conseguia respirar. Depois, fui suspenso no ar gelado e jogado na água novamente, agora preso no fundo da balsa. Meu corpo implorava por ar quando consegui, com muito custo, me soltar do cinto que me prendia à borda. Caí exausto no fundo da balsa e me pus a descansar.

Com o fim da tormenta, avistei uma gaivota voando sob minha cabeça. Era velha, grande e pesada e isso renovou as minhas energias, pois imaginava que estava próximo da terra. Naquele mesmo dia, em terra firme, as pessoas rezaram uma missa pela minha alma. Era meu oitavo dia no mar.

10. Festa em Mobile

O calor estava asfixiante em Mobile, mas nós não nos preocupávamos. Eu havia ido a uma festa ao ar livre com meus companheiros do destróier. Batíamos palmas e cantávamos enquanto uma mulher, a mesma de todos os sábados, dançava num estrado de madeira. Seu ventre nu e rosto coberto por um véu nos lembravam das bailarinas árabes do cinema.

Estava tão extasiado com toda aquela alegria que até me assustei quando uma tartaruga gigante passou ao meu lado. Era meu nono dia no mar. Era minha nona noite de morto. Sabia que desmontariam o altar do velório e se acostumariam à minha ausência. Levei a medalha de N. Sra. do Carmo à boca e fiquei rezando mentalmente. Só então que me senti bem, pois sabia que estava morrendo.

11. Minha última oportunidade

Estava sem forças, mas infelizmente vivo. Eu acreditara que não passaria daquela noite, mas havia entrado em um novo dia outra vez. Antes eu tinha medo da noite e agora era o sol que açoitava minha pele ferida para me enlouquecer de fome e sede. Amaldiçoei minha sorte por ter me permitido sobreviver todos aqueles dias.

Foi então que vi a terra. Sabia que em boas condições poderia nadar por dois quilômetros, mas não sabia o quanto conseguiria depois de dez dias sem comer nada mais que um pedaço de peixe e uma raiz. Era minha última oportunidade. Nem tive tempo para pensar nos tubarões. Soltei o remo, fechei os olhos e me atirei à água. Nadei e nadei, mas não vi a terra. Com certeza se tratava de uma alucinação. E eu tinha nadado muito, era impossível voltar.

12. Estava na Colômbia?

Mesmo distante, consegui ver claramente o perfil dos coqueiros. Era realidade. Cansado, pensei em jogar minhas roupas e sapatos longe, mas ainda tinha pudor. Quando percebi que a água estava à altura das minhas coxas, decidi me arrastar. A areia miúda machucava meus joelhos e minhas mãos em carne viva, mas não me importava. Já em terra firme, estendi meu corpo e esperei.

Avistei uma mulher negra e muito magra, que pensei ser a minha salvadora. “Hello”, disse angustiado. Minha salvadora saiu correndo sem olhar para trás. Uma eternidade depois – não mais que alguns minutos – veio um homem, um burro e um cachorro. O homem me disse que iria até o porto e já voltaria. Desesperado, o fiz prometer que me salvaria. Antes de se afastar, entretanto, perguntei em que país estava. Então recebi a resposta mais improvável de todas: estava na Colômbia.

13. Sozinho na multidão

O homem voltou. Como não conseguia caminhar, fui colocado em cima de um burro. Desejei tomar a água dos cocos que estavam no caminho. “Não tenho facão”, disse o homem que levava um facão no cinto. Já instalado em uma casinha, senti a fumaça cheirosa que vinha da cozinha, mas não me permitiam comer. Mais que a fome e a sede, sentia vontade de contar o que me havia acontecido. “Fique quieto, depois nos conta”, responderam. Depois entendi que eu estava entre gente amiga e que poderiam ter me matado se tivessem saciado minha fome, sede e ímpeto em falar.

Homens, mulheres e crianças se mobilizaram para me levar a Mulatos e, depois, San Juan de Urabá. No último caminho, eu fui acompanhado por não menos que seiscentas pessoas, mas eu estava sozinho na multidão. Minha felicidade só se tornou completa quando recebi a grande notícia: um avião estava pronto para me levar à minha família em Cartagena.

 14. Apenas um marinheiro

As queimaduras deixaram de doer e a ferida do joelho cicatrizou. Meus amigos se tornaram ainda mais próximos, assim como meus inimigos. E recebi propostas publicitárias de toda sorte. O tempo passou, mas ainda sou Luís Alejandro Velasco. Não sou um herói, apenas um marinheiro que conseguiu sobreviver por dez dias sem comer e nem beber.

Contei minha história na televisão e em programas de rádio. Contei, também, a uma velha viúva que me convidou a visitá-la em sua casa. Há quem diga que a minha história, que tantas vezes contei, não passa de uma invenção fantástica. Aos que me questionam, eu pergunto: afinal, o que eu fiz durante dez dias no mar?


Caroline Souza Mestranda em Comunicação e graduada em Jornalismo (2016) pela Universidade Estadual de Londrina com o Trabalho de Conclusão de Curso Técnicas de Reportagem e Realismo Mágico em Relato de um Náufrago, de Gabriel García Márquez, premiado no 22º Prêmio Sangue Novo do Jornalismo Paranaense. Investigadora do projeto “Imagens da América Latina: textos jornalístico-literários de Gabriel García Márquez”. Tem experiências em assessoria de comunicação, jornalismo digital e gestão de marketing. E-mail: carolineap.desouza29@gmail.com

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