Memória de minhas putas tristes

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 6 meses atrás


Uma história para ler e reler. Um jornalista, ao completar 90 anos, decide dar-se de presente uma noite sensual. Não uma brincadeira de sexo banal, num bordel qualquer. Mas, uma noite ao lado de uma uma virgem de 14 anos. Gabo remete o leitor, como sempre, a uma jornada de autoconhecimento. Talvez ele próprio tenha feito esse trajeto ao ler a Casa das belas adormecidas, de kawabata. Para os que estão a envelhecer, vale a pena ler e reler esses livros, saídos das memórias de dois ganhadores de Prêmios Nobel.

Duda Paloco

Capítulo I

O barco chega pelo cais do porto, assim como chegam seus noventa anos. Decidiu se deleitar com uma virgem, como presente para si mesmo. Telefonou para Rosa Cabarcas. Mulher de olhos cruéis, dona do bordel mais famoso da cidade. Mesmo depois de 20 anos, ela reconhece a voz do “velho sábio” pedindo quase que o impossível.

Fuigiu do amor a vida inteira. O jornalista negou a humanidade e os desejos da alma. De bordel em bordel fez sua coleção de putas, já eram 514. Aposentado pelo EL DIÁRIO DE LA PAZ, e por lecionar gramática, ainda escrevia crônicas dominicais. Vivia na casa da família, em uma cidade imaginária da Colômbia.

Colocou a mãe em um pedestal. As outras mulheres em águas rasas. Sempre pagou pelo sexo, mesmo que não fosse com prostituta. Nem a empregada Damiana havia escapado, literalmente, à força.

Arrumado para a ocasião, entrou no bordel pela porta dos fundos para encontrar a virgem de 14 anos. A cafetina havia suado para conseguir a prenda. A garota, que estava com medo, adormecida por uma bebida, aguardava no quarto. Sem saber o que fazer, o velho se despiu e contemplou-a nua na cama.

Pela primeira vez os cinco sentidos foram aguçados sem a necessidade de sexo. No calor do quarto mequetrefe, ele adormece ao lado virgem. Cansada da pobreza e de abotoar botões na fábrica onde trabalhava, ainda dorme intocada.


Capítulo II

Partiu antes que a menina acordasse. Ainda no clima daquele quarto, chegou em casa e perguntou à Damiana, sua empregada, se ela já tinha se apaixonado. Ela confessa que sentiu paixão por ele durante 22 anos. Ele nunca. Saber disso foi um empurrão para terminar sua crônica dominical, acompanhada da carta de demissão. Aos poucos tomava noção do peso de sua idade e do tempo que parecia se esgotar. O velho já havia noivado, mas deixou Ximena Ortiz esperando na igreja. Não a amava.

Com meio século de jornalismo, ele era quase um artefato arqueológico do EL DIÁRIO DE LA PAZ. Entregou a crônica e a carta ao sair da festa surpresa preparada pelo pessoal da redação, mas o diretor o convenceu a continuar no jornal. Ganhou um gato angorá dos tipógrafos, para lhe fazer companhia. Velho, anacrônico, negava os avanços tecnológicos que chegavam na Colômbia desde o correio aéreo, e agora com um bichano. O personagem ultrapassado estava construído.

Mas o coração ainda batia por Delgadina, como decidiu chamar a menina intocada do bordel. Depois de recusar o pedido de Rosa Cabarcas para encontrar a virgem, foi tomado pela inquietação e ligou pedindo para vê-la. Desta vez a queria sem roupa e sem verniz. Uma idealização completa de pureza, assim como a bela adormecida esperando o beijo do amor verdadeiro.


Capítulo III

Passou a decorar o quarto do bordel. Aos poucos construiu um cenário. Construiu também Delgadina em sua imaginação. Era mais real em sua mente do que em carne e osso. Modificava as feições da menina conforme o humor oscilava.

Transformou as crônicas dominicais em cartas de amor. Pela primeira vez, aos 90 anos, se conhecia melhor.

“O amor não é um estado da alma e sim um signo do zodíaco”. Assim como
quem lê o horoscopo do outro, em um dos encontros, copiou as linhas da mão da bela adormecida e deu para Sahibi ler.

O presente de Natal foi uma bicicleta. Aí a ficha caiu. Ela tinha uma vida, atravessava a cidade para trabalhar. Não existia apenas naquela cama. Lidar com a autonomia do outro é difícil para os apaixonados.


Capítulo IV

No meio de uma das noites, Rosa Cabarcas o acordou. Pediu ajuda. No quarto ao lado um homem havia sido assassinado à punhaladas. Vestiram o morto. Ele estava assustado, mas a dona do bordel manteve a tranquilidade. Isso parecia ser frequente. Saiu de lá e se meteu na redação para escrever sobre o caso, sempre afastando as pistas reais.

Cabarcas sumiu por um mês. O paradeiro da amante ele não sabia. Procurou no hospital de caridade, na fábrica de botões e nas ruas. Nada. O amor havia comido suas roupas, suas crônicas, sua energia. Não tomava mais banho, ficava ao lado do telefone o dia todo, a espera de notícias.

Quando elas voltaram ele foi, com lágrimas nos olhos, encontrar a menina. Mas ela estava mudada, com roupas e joias luxuosas. O corpo maior e mais harmônico. Não a reconheceu. Chamou as duas de putas e quebrou o quarto todo. Acreditava que Rosa vendera a virgindade da bela adormecida para outro. Foi embora, frustrado.


Capítulo V

Se afastou por um tempo, com a certeza de que a menina teria vendido a virgindade. Sofreu de amor até decidir ligar para Rosa, a cafetina, a fim de encontrar a menina.

Já estava quase falido. Vendeu um dos quadros de sua finada mãe. Pagou a divida do quarto que destruíra na noite de fúria. Enfim, encontrou Delgadina. A virgindade não tinha sido roubada. As joias usadas na outra noite eram falsas. As roupas, emprestadas.

Pensava na morte mais do que nunca. Na beira dos 91 anos. Apostou com Rosa: quem morresse primeiro ficava com o bordel e a casa dele. Por fim, deixariam para a menina essa herança.

Deitou na cama à espera da morte. Mas lá estava ele, o barco. Chegando no cais trazendo mais um ano, ou menos um. Não morreu. Jovem por dentro, era o começo dos cem anos.

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