Governo de Milei ameaça sepultar o direito à memória na Argentina

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 4 meses atrás


Ninguém acorda um país que ainda conversa com seus mortos. Na Argentina, o silêncio tem sotaque, e a história, ossadas. O vento do outono passa sobre os lenços brancos pintados no chão da Plaza de Mayo. Há quem os veja como simples marcas turísticas, quase decorativas, como se a memória fosse um souvenir. Mas quem escuta com atenção sabe: aqueles traços são vozes, e vozes não se apagam com decretos.

Por Karine Siqueira

Durante a ditadura militar argentina, entre 1976 e 1983, ao menos 30 mil pessoas desapareceram. Os militares chamaram isso de “reorganização nacional”. Tomás Eloy Martínez, jornalista e escritor, chamou de Purgatório — o espaço entre céu e inferno, o lugar onde não se vive, mas também não se morre. 

Quarenta anos depois, quem ocupa o palanque é Javier Milei, um economista e professor que se apresenta como libertador do país. Seu discurso é sobre “corrigir a visão distorcida da história”, e em suas ações isso se concretiza em reduzir ministérios, desmontar políticas públicas, privatizar empresas estatais e transformar uma moto-serra em símbolo de poder. A vice-presidente Victoria Villarruel, herdeira direta do discurso militarista, afirma que o que houve no país foi “uma guerra contra o comunismo”, em que “ambos os lados cometeram excessos”. Há algo assustadoramente familiar nesse revisionismo.

Nesse processo, os alvos se repetem: a Secretaria de Direitos Humanos foi rebaixada a subsecretaria; o Museo Sitio de Memoria ESMA, onde funcionou um dos maiores centros clandestinos de detenção da ditadura, sofre cortes e ameaça de esvaziamento. O Banco Nacional de Dados Genéticos, primordial para identificar filhos de desaparecidos que foram adotados ilegalmente, também foi mutilado. Ao todo, mais de 400 trabalhadores de instituições voltadas à memória foram demitidos, como se apagar o passado fosse tão urgente quanto os cortes orçamentários.

As Abuelas de Plaza de Mayo, mulheres que aprenderam a desafiar generais com um lenço branco, símbolo dos filhos detidos e desaparecidos durante o regime militar, carregam a dor de terem perdido duas gerações, agora enfrentam um inimigo mais sutil: a banalização.

Na ditadura, chamavam de “subversivos” até crianças nascidas em cativeiro, hoje, chamam de “gastos ideológicos” os programas que tentam encontrar essas mesmas crianças. A Argentina atual convive com o assombro de ver a história tratada como entulho, como se as mães, os netos, os arquivos e os ossos que ainda esperam por nome fossem um luxo que o mercado não pode mais sustentar.

A guerra contra a memória não caminha sozinha: a economia também sangra. Em 2024, no primeiro ano de mandato de Milei, a moeda argentina foi desvalorizada em 54%, a inflação chegou a 118%, e o número de pessoas abaixo da linha da pobreza alcançava 38% da população conforme dados do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (INDEC).

O Purgatório, de Tomás Eloy Martínez é o lugar onde se espera por um veredito, e talvez seja exatamente nele onde resistem a lembrança e o esquecimento, entre a ESMA e o mercado, entre a dor e o lucro. Só não se enganem: o que está em jogo não é apenas o passado, é o direito a um futuro com memória.


Karine Siqueira é estudante de Jornalismo na UEL, participa da Revista Jornalismo & Ficção na América Latina e desenvolve, no Grupo Gabo de Pesquisa, o projeto de conclusão de curso: “Jornalismo Literário como ferramenta de denúncia no romance Purgatório de Tomás Eloy Martinez”.

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