Banzeiro Òkòtó: a inquietação de ser natureza e o jornalismo que arde com a floresta

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 12 horas atrás


Não é possível viver em paz enquanto nossa casa queima, é necessário terror para existir e precisamos, acima de tudo, mudar a narrativa e os narradores. Esta é a lição ensinada por Eliane Brum, jornalista que agora é uma mulher da floresta. Emitindo gritos de sobrevivência da terra a partir de Altamira, em plena Amazônia, onde está, para ela, o centro do mundo.

                                                                                             Por Manuela Domingues

            Banzeiro Òkòtó, livro da jornalista brasileira Eliane Brum é uma obra que chama aqueles que nunca viveram a experiência de se tornar um com a floresta a ver o mundo de modo diferente. É irônico que nós, seres humanos, nunca fomos algo separado da natureza. Nunca fomos outra coisa além daquilo que somos.

            Sempre me pareceu estranho ver homens ricos e poderosos financiando a destruição de algo que é parte de nós. Por mais que viver em salas com ar-condicionado em 18 °C disfarce o fato de que, mais rápido do que poderíamos imaginar, estamos pegando fogo, ainda sim sentimos e morremos junto com a natureza que é destruída. Somos tão naturais quanto a floresta.

            Eu não entendia, até me mudar para Londrina, o que uma cidade de pedra, construída em cima de pedra, é capaz de fazer com as pessoas. Desde a infância me foi natural ser parte da floresta, brincar com a natureza e estar em harmonia com aquilo que somos. A criança que fui também sangrava quando a natureza se machucava, se sentia uma só com a floresta de onde veio e em que cresceu. Tudo isso sempre foi maior que qualquer cidade para mim.

            Então, ao mesmo tempo que me surpreende, entendo o fato de que Eliane Brum tenha que ter ido para o meio da Amazônia para se sentir parte da floresta. Para sentir aquilo que nós, que não crescemos em São Paulo ou em qualquer cidade feita de concreto, sentimos desde crianças.

            Também não me surpreende o fato de me identificar mais com os relatos dos povos da floresta do que com a vivência da autora, mas concordo e faço da luta dela a minha: não é possível viver em paz enquanto nossa casa queima, é necessário terror para existir e precisamos, acima de tudo, mudar a narrativa e os narradores.

            Entendo o encantamento e agonia de Eliane Brum ao perceber que se tornou a “mulher-floresta”. Não tem como viver em paz sendo parte da floresta e, por causa disso, ser violentada a todo momento por homens velhos e nojentos. É muito interessante a inquietação de ser natureza. Não basta estar na natureza, você deseja se tornar a aquilo que vê. Não quer tocar a árvore, quer ser a árvore. Não quer mergulhar no rio, quer se fundir ao rio. Não quer estar, quer ser.

            O que me chama a atenção é como homens que fazem parte da natureza querem destruir a si mesmos. Mas aí entra algo que, para pessoas com o ego tão elevado, é difícil de compreender: se você é parte da floresta, não é maior que a floresta. O mesmo valor que tem o peixe, tem a flor. O mesmo valor que tem o rio, tem o pássaro. O mesmo valor que tem o ar, tem o ser humano. Para homens tão inseguros, mas tão malvados, é difícil se “diminuir” (diminuir em sua visão pobre de mundo) até o tamanho de uma abelha.

            Eliane Brum propõe deslocar a centralidade e mudar a estrutura de pensamento, algo que deve ser feito em conjunto. Algo que deve ser coletivo. Acredito que a mídia é parte disso, mídia essa que infelizmente sempre foi corrompida e comprada por interesses mais caros e lucrativos. Mas em passos de formiga podemos fazer a diferença, podemos tentar subverter a narrativa. Podemos dar voz aos que precisam ser ouvidos, calar a boca dos poderosos. Podemos mudar a pauta, torná-la importante de verdade. Podemos parar de pedir para as pessoas tomarem banhos mais rápidos e começar a cobrar quem realmente deve ser cobrado.

            Eliane Brum traz a provocação importante de ouvirmos o outro sem deixarmos nossos preconceitos e pensamentos corromperem o que é importante para ele, o que é importante para toda uma comunidade. Esse é o papel do jornalista, trazer luz para aqueles que são deixados escondidos na escuridão dos que lideram o sistema.

            O jornalismo deve ser rebelde, subversivo, anticapitalista, deve falar com todas as letras. O jornalismo deve ser isso, caso contrário é apenas assessoria de imprensa para Musks, Zuckerbergs ou Bezos. A autora de Banzeiro Òkòtó traz essa provocação importante: ouvir o outro sem deixar nossos preconceitos e pensamentos corromperem o que é importante para ele, o que é importante para toda uma comunidade. Esse é o papel do jornalista, trazer luz para aqueles que são deixados escondidos na escuridão dos que lideram o sistema.


Manuela Domingues, estudante de Jornalismo da UEL, professora de redação, participa do Grupo Gabo de Pesquisa. É revisora e editora da Revista Jornalismo & Ficção na América Latina.

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