Outros demônios do amor
Revista Jornalismo & Ficção
atualizado 8 meses atrás
Do amor e outros demônios, de García Márquez, conta a história de Sierva Maria, uma marquesa, de 12 anos, enclausurada em um convento por estar possuída por demônios. Ali o padre Cayetano Delaura seduz a jovem fragilizada. Esse folhetisnta, postado entre abril e agosto de 2023, imagina um possível diário dos amantes.
Texto: Anna Carolina Ferreira Rosa e Lorena Hruschka
Ilustração: Duda Paloco
o lado obscuro do padre
desde jovem, sempre quis tornar-me padre. nunca pensei em outro caminho, e quando finalmente consegui, me senti realizado.
deus iria agir através de mim, eu iria curar, salvar e cuidar daqueles mais necessitados e trazê-los para os braços do salvador. foram anos para que o bispo da diocese dom Toribio de Cáceres y Virtudes confiasse em mim e compartilhasse comigo os mais severos ofícios.
não imaginei que a caminho do céu encontraria com o meu lado mais obscuro.
Padre Cayetano Delaura
outros demônios do amor
acordei animada neste domingo, era minha festa de 12 anos e amava as comemorações que fazíamos no pátio, longe da casa grande.
nesse dia, eu e uma das criadas do meu pai, que particularmente era mais família do que ele, fomos até o centro para comprar guizos pro meu aniversário.
não sei se acredito em destino, mas a partir desse dia tudo mudou. Levei uma mordida de um vira lata que tinha uma estrela na testa.
ela me fez, literalmente, morrer de amores e, não de raiva, como muitos pensam. Calma, querido diário, você ainda vai entender…
Sierva Maria
com o demônio no corpo
se ouvia nas ruas sobre a filha do Marquês de Casalduero, Sierva Maria, que estava apresentando sintomas de uma possessão demoníaca.
o bispo da diocese dom Toribio de Cáceres y Virtudes havia me contado sobre o aumento de número de possessões maléficas em corpos inocentes e de como diagnósticos médicos de doenças mundanas atrasavam a cura real.
precisava seguir a minha vocação e ajudar a garota, que pensava estar sofrendo de raiva.
torci para que ele a levasse ao convento das Clarissas, pois queria livrá-la do mal que a tomou.
Padre Cayetano Delaura
outros demônios do amor
a mordida que eu levei na canela ainda dói. as pessoas que me criam e dormem comigo, já fizeram de tudo: rituais, banhos de ervas, usaram até sanguessugas para purificar meu sangue.
dizem que tudo isso é para evitar uma tal de ‘’raiva’’. mas me sinto bem, apenas meu tornozelo está inchado.
o Marquês de Casalduero, e a Bernarda Cabrera, meus pais biológicos, só ficaram sabendo desse tal ataque hoje.
achei engraçado, nunca se preocuparam comigo até então. na verdade Bernarda ainda não se importa.
mas o Marquês parece inquieto, não para de procurar por feiticeiros e médicos que foram caçados pela Santa Inquisição. espero que esses banhos e rituais parem logo…
Sierva Maria
o sonho do padre
durante anos preparei-me para esta tarefa. lia por horas. a biblioteca tornou-se meu lar. mas desde a visita do marquês ao bispo, até a leitura parecia um fardo.
só conseguia pensar na jovem e em seu sofrimento. eu não a conhecia, mas já havia sonhado com ela.
quando contei ao bispo sobre o meu sonho, no qual olhava por uma janela onde em frente morreram três cordeiros sufocados na neve, ele me concedeu a honra de livrar Sierva Maria da possessão.
Padre Cayetano Delaura
raiva ou demônio no corpo?
não sabia que uma mordida iria mudar toda minha vida. ontem, com muita pressa, o Marquês pegou minha mala durante a madrugada, guardou meus pijamas, minhas roupas, minha pantufa e meu chapéu. ele me perguntou se sabia onde estávamos indo. disse que não. meu pai me explicou que iríamos para o Convento das Clarissas. pelo jeito, o tal do diagnóstico de raiva foi descartado e agora acreditavam que eu tinha demônios no corpo. será? fui recebida por uma mulher bem grande, séria e rígida. tomou o chapéu da minha cabeça, disse que queria cortar minha cabeleira e, em seguida me levou à uma cela nojenta.
Sierva Maria
o desejo de cura excita o padre
não a conhecia, mas graças aos meus sonhos tive a oportunidade de salvá-la. quando a vi, naquela cela, com o aspecto de morta não soube o que sentir. de Sierva Maria, só se ouvia silêncio. passei noites acordado tentando entender como o demônio se apossou daquela jovem e como livrá-la de seu castigo.
na minha segunda visita, Sierva Maria deixou-me alimentá-la. a esperança de curar a garota excitou-me. não parava de pensar nela, ansiava pelas minhas próximas visitas ao convento.
passei a vê-la em meus sonhos. “Deus te salve Maria de todos os Anjos”. aos poucos deixei de acreditar que a jovem estava possessa. “vou morrer” ouvi Sierva Maria dizer com tristeza no olhar. senti desejo de protegê-la.
Padre Cayetano Delaura
banho de água benta para expulsar o diabo
primeira vez que vi esse homem. boatos no convento diziam que ele seria responsável por tirar os demônios de mim. era o padre Cayetano Delaura, acompanhado da abadessa, que entrou na minha cela imunda e me banhou com “água abençoada”. meus braços e pernas estavam em carne viva, tudo ardia muito.
a reação da água benta fazia com que, nas paredes velhas do convento, manchas vermelhas aparecessem como sangue. isso fez com que abadessa acreditasse ainda mais que eu estava com o demônio no corpo.
o padre pediu para que todos se retirassem da cela. ele examinou meus punhos e pernas, completamente feridos pelas algemas. corajoso ou tolo? o padre Delaura foi o único que ousou chegar perto de mim e tentar curar minhas feridas. não conseguia confiar nele. nem sequer respondi suas perguntas naquele primeiro momento.
Sierva Maria
a sensação do pecado
ansiava pelas visitas ao convento. aos poucos me aproximava de Sierva Maria e reconhecia cada vez mais, que aquele não era seu lugar. quando encontrava o bispo, tentava defendê-la, porém quebraria a confiança de meu superior. como estaria de novo com a jovem?
precisava vê-la, necessitava de seu tempo, sua atenção. Sua inocência me encantava. meu coração batia forte. desejava loucamente estar na presença de Sierva Maria.
certa noite meu desejo transbordou. mas usei da minha autoridade para vê-la. entrei em sua cela e a garota já estava adormecida. acordou assustada e não quis me ver, mas insisti. não conseguiria imaginar deixá-la naquele momento. Sierva Maria gritava contra minha presença. permiti ao meu corpo a sensação do pecado. quanto mais a jovem gritava, mais aquele sentimento crescia. naquele momento tive certeza, ela era o demônio.
Padre Cayetano Delaura
Sierva Maria cede pelas guloseimas
há algumas semanas estava em contato com Delaura, o padre. ele trazia doces para me cativar. aceitava. fingia acreditar nas intenções dele.
numa noite qualquer, do nada, esse homem apareceu na minha cela. havia escalado o muro para me ver, às escondidas.
gritei !!!! mandei que fosse embora. não foi. repeti aos berros: vá embora!!!
ele disse que preferia morrer. a teimosia e insistência dele me cativaram. ele tinha algo diferente. concordei que continuasse me vendo, desde que trouxesse as guloseimas.
Sierva Maria
deitei-me ao lado dela e rezei
voltei a vê-la. Sierva Maria exigia que se fosse para visitá-la durante a noite teria que levar doces.
certa noite, deitei-me ao lado dela. Sierva Maria me encarava e comecei a rezar. o que se passava pela cabeça da garota? será que o mal estava roubando-a de mim?
para a minha surpresa perguntou a minha idade. trinta e seis anos. me chamou de velhinho enrugado. eu simplesmente ri. estava encantado demais com a sua inocência para ficar chateado com essa brincadeira sobre a minha idade.
Padre Cayetano Delaura
poemas no catre
desde aquela noite, Delaura, o padre, ia todas as madrugadas me visitar na cela. ele entrava escondido pelo túnel subterrâneo do convento. em uma das noites me atrevi a perguntar a idade dele. sabia que existia uma diferença entre nós, mas não imaginava que fosse tão grande.
ele tem trinta e seis. um velhinho enrugado, disse-lhe brincando. afinal, eu tenho 12 anos. Delaura achou graça. ficávamos madrugadas infinitas recitando poemas, deitados no catre, um ao lado do outro. amava os versos que ele declamava. ele contou que seu avô escrevia sonetos.
Sierva Maria
padre beija garota possuída
eu, padre, 36 anos na castidade, nunca imaginei que meu primeiro beijo seria com uma garota supostamente possuída por Lúcifer, no convento das Clarissas.
meus lábios tocaram os de Sierva Maria. foi uma supresa. senti que a amava. jamais havia sentido algo parecido. seu beijo foi eletrizante.
assustado me virei no meio do beijo. percebi o que havia feito. uma vida inteira dedicada ao clero se apagou em segundos, ao beijar a jovem encarcerada. precisava de silêncio. precisava orar.
recuperei-me em instantes. os beijos continuaram. por dias e noites o nosso amor brilhava como a última estrela do céu. fazia tudo por Sierva Maria. pediu-me para comer uma barata. comi.
Padre Cayetano Delaura
e o padre comeu uma barata
“para que só em mim seja provado o quanto corta uma espada num rendido”, disse antes que Delaura beijasse meus lábios pela primeira vez. meu corpo ficou eletrizante, nunca tinha experimentado nada igual, foi meu primeiro beijo. respirei fundo, como uma brisa do mar.
não sei o que eu fiz de errado, mas em algum momento Delaura simplesmente virou de costas e ficou com os olhos fechados, em silêncio. essa quietude me assustava, cutuquei suas costas e questionei o que havia acontecido. “deixa-me agora”, murmurou ele.
o que eu teria feito de errado? fiquei quieta e acabei dormindo, quando acordei no dia seguinte ele já não estava. nos próximos dias, tudo ocorreu como se nada tivesse acontecido. noites em claro conversando. eu estava literalmente morrendo de amor por Cayetano! certo dia, ele me disse que seria capaz de qualquer coisa por mim. pedi que comesse uma barata! que nojo. acredita que ele fez mesmo isso?
Sierva Maria
condenado pelo Santo Ofício
nunca mais pude ver minha amada.
o túnel subterrâneo pelo qual eu a visitava foi fechado após minha útltima fuga.
daria tudo por mais uma noite na cela com Sierva Maria.
mas, fui condenado pelo Santo Ofício e minha vida perdeu o sentido.
Padre Cayetano Delaura
rasparam minha amada cabeleira
uma das noviças do convento planejou uma fuga. o túnel que Cayetano utilizava para entrar na minha cela foi descoberto e bloqueado. fui levada amarrada para outro cômodo, reforçado com cadeado.
esperei Cayetano por dias e dias… no terceiro dia já não tinha forças para comer. as irmãs clarissas acreditaram, de vez, que meu corpo abrigava demônios.
rasparam minha amada cabeleira. submeteram-me a rituais agressivos. meu corpo tão descarnado podia se soltar das correntes. o padre Cayetano Delaura não retornou à minha cela com as guloseimas. resolvi morrer. aceitei que ele jamais voltaria.
Sierva Maria
Anna Carolina Ferreira da Rosa, formada em Jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina. Pós-graduanda em Gestão de Trade Marketing – comércio, indústria e varejo pela ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). Participou do Grupo Gabo de Pesquisa entre 2020 e 2023.
Lorena Hruschka, formada em Jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina. Pós-graduanda em Fashion Business pela FAAP. Redatora na Sunhub Educação. Participou do Grupo Gabo de Pesquisa entre 2020 e 2023.