Armazenando

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 7 meses atrás


Apropriar-se da literatura pode ser uma excelente forma de abandonar a si mesmo.

Leonardo Oliveira

Ela ficava na mesma mesa, do lado direito da janela branca, onde as mudas no parapeito estavam plantadas nas latas do café mais caro do mundo.

Na mesa de dois lugares sentava-se sozinha e sem visão da janela olhava a parede sem reboco decidida a não se arriscar: cappuccino italiano e pão petrópolis com ovo gema mole.

Lia o cardápio como quem examina as instruções de emergência dos voos comerciais sabendo que jamais reagiria a situações limite.

Escolhia para todas as ocasiões a passividade da não-ação e isso já lhe parecia reivindicar energia demais.

Tinha algo como um apple watch intracraniano que media a energia mental necessária para cada escolha. Ao final do dia tinha acesso a gráficos conclusivos que usava para otimizar a vida do dia seguinte.

Antes de levar a xícara à boca optava primeiro por uma mordida selvagem no pão com ovo. Depois que leu de 30 a 35 não amei, nem odiei se entristecia quando o caldinho da gema deixava de formar uma baba amarela vigorosa o suficiente para escorrer do canto da boca até próximo da ponta do queixo. Sua intenção ritualística era recorrer apressada ao guardanapo para, em segredo, solenemente homenagear Nelson Rodrigues.

Para evitar que a paisagem do brunch se resumisse à parede descascada pela inventividade vulgar do arquiteto local, examinava o movimento do pequeno salão de assoalho não com olhos de cigana oblíqua e dissimulada, mas com a lascívia adulta e anárquica de CLB.

Em casa cultuava Machado, na rua Ubaldo Ribeiro.

Agir na pele das personagens que admirava era parte do propósito sustentável de economia energética. Com os clássicos aprendeu a performar socialmente e com a vigilância da maçã norte-americana a não perder seu tempo.

Em filosofia parou nos gregos: preferia os amores platônicos.

Antes de dar o último gole no café e constatar a mancha escura no fundo da porcelana branca, mirava nos olhos de uns e outros e os julgava internamente pela falta de vitalidade nos diálogos de cafeteria que invadiam seus tímpanos e consumiam, contra sua vontade, pelo menos um décimo da energia substancial diária que julgava saudável reter.

Sonhava agir como Amaranta e gritar a um certo metidão engravatado que costumava frequentar a mesa ao lado, de um porte mais fino que um espeto de churrasco, que assim como Fernanda era o tipo exato que confunde o cu com as têmporas.

…É que ingressara muito recentemente à casa dos Buendía, de modo que precisava de mais tempo para estreitar-se a tantos novos personagens.


Leonardo Oliveira é mineiro, estudante de jornalismo, advogado e desorientado. E-mail leonardo.pimenta@uel.br

Leia também