Cabo do carnaval

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 1 ano atrás


Ah, mas a ciência cansa e desanima, para ser franco. Secretamente, desejamos às vezes a cegueira, a surdez e a mudez, mas apenas quando deixamos os malefícios dos sentidos suplantarem sua grande serventia. Ora que o Sol ainda nos escalda a pele, a Lua nos oscila como às marés, a Terra nos sustenta os pés e o Ar nos enleva o espírito!

João Pedro Conchon 

Que 2021 foi um ano maldito, não restam dúvidas. Noite mal dormida, promete longo e cansativo dia adiante, por Deus, que eu sei que 2022 tampouco será fácil. Já não me agrada o tom em que começa a música. Este carnaval não foi bem sucedido, não anunciou bem o ano que, por fim, começa de fato. Machado definiu a vida como uma enxurrada perpétua. Há turbulência nas águas da existência, a correnteza com força nos arrasta, mas talvez seja mais prudente para quem se afoga debater terra, não água. Talvez, mas sejamos imprudentes um pouco mais.

Há tempos a filosofia demora-se em explicar a revoada brasileira na temporada de verão em direção ao litoral, mas creio ter encontrado explicação razoável: o fato se dá devido à vontade de, ao final de um desgraçado ano, querer dar as costas à terra e deixar-se levar pelo repuxo do mar. Isto também explica o fenômeno de que na praia, há tal atração marítima que faz virar as cadeiras para a sua direção. Observai, não é ficção. Como as sequiosas manadas da anciã África migram durante os períodos de seca, o brasileiro quer baixar à praia no final de ano. A migração é árdua e perigosa: no caminho da vida encontra-se os obstáculos da morte. As largas manadas de largos herbívoros atravessar devem rios infestados de crocodilos – ou rodovias de possantes automóveis.

A ciência explica a tudo, exceto àquilo que não é. O gnu gostaria de entender porque Deus criou o crocodilo para tão brutalmente destroçá-lo, mas sendo necessário atravessar o mortífero rio, sabe que nada adianta chorar os feitos de Deus: melhor é respirar fundo, encher-se de ódio e vontade de viver e atravessá-lo com todas as forças. Que sejamos a dedo escolhidos para sermos destroçados por répteis famintos. A manada avança longo desconforto do carro, atrasando uns aos outros, todos obstinados em descer ao litoral, sedentos do reencontro com o mar, como se ele, Oceano, fosse destinação, e não o grande caminho que é. Oceano! Fui-lo ver para saudá-lo, enfim. Aproximei-me cheio de cautela e suas mais ávidas ondas me vieram lamber: Oceano provava-me, sei que me comeria. Senti-me atraído pela fatal profundidade. Quis caminhar, nadar até nunca mais, mas há ainda o medo da vida em meu peito. Eu conheço o seu poder e tremo. Não me encanta seu espetáculo praieiro, que nos inunda com as escumas da morte! Que é areia, se não o resto do que se foi? Cinzas do que se queimou? Areia exicial e úmida, é sobre ti mesma que dançamos!

Neste ano, nesta praia, encarei mais o continente adentro do que o mar afora. A serra imponente dizia-me da instabilidade do mar, de sempre agitadas águas, cujas ondas sucedem-se e perecerem todas na praia. O contrário dela, a velha, imóvel e constante serra. Ouvi-a chorar. Triste serra, não veem os olhos humanos que a tua tristeza reside ao lado do Oceano e que ele nada faz para ajudá-la? Oceano quer submergi-la, Oceano quer submergir o mundo. Ah, distante realidade de solitárias serras e insidiosos mares! O mundo é um castelinho de areia na praia do universo. Deus brincou e foi-se embora da praia, deixando sua criação à sorte da crescente maré. Isso é um fato científico.

Ah, mas a ciência cansa e desanima, para ser franco. Secretamente, desejamos às vezes a cegueira, a surdez e a mudez, mas apenas quando deixamos os malefícios dos sentidos suplantarem sua grande serventia. Ora que o Sol ainda nos escalda a pele, a Lua nos oscila como às marés, a Terra nos sustenta os pés e o Ar nos enleva o espírito! Eis que o coração, mesmo machucado, insiste em bater. Dancemos sobre a areia da vida, como vos disse! Um banquete façamos para agradar os vivos e honrar os mortos! O Amor antecedeu ao próprio mundo e ainda assim ele nos é esquivo. Nada é perpétuo, nem mesmo a enxurrada da vida, meu caro Machado, mas tu o sabias perfeitamente, eu só não sei se quem te lê o sabe também. A tua ambiguidade engana duas vezes. Não é a causa da tua grandeza, mas é o que me agrada a língua de serpente e os olhos de águia. Teu humor corrosivo não foi gracejo do sarcasmo. Obrigado viu-se a toda a obra erguer sobre a ironia de areia movediça. Grande Machado! Não havia doutor que lhe receitasse um vermífugo? Talvez este seja um país triste, afinal. A tua pantanosa literatura quer disso me convencer, mas jamais apontarei o dedo na tua cara, como é a práxis fazer.

Enfim!
Para banquetear saímos, e ao acaso

Levou-me a enxurrada diante dela.

Colidi meus olhares contra os seus,

Num acidente, apenas, terrível susto.

Ó, como eu morri nessa tragédia!

Carbono que refina ferro em duro aço,

Na escuridão era de tantas a mais bela,

Por feições, gestos, vestes e olhares,

Por tudo de sagrado num vislumbre!

Será que ela me amou também?

O seu boy era um urubu, um urubu!

Aqui nesta praia eles revoam em bandos,

Contra o vento pairam, suspenso nos ares,

De bucho cheio, estão atentos e satisfeitos:

Outro promissor ano para carniceiros.

E nem Tétis pode um mortal imunizar da morte.

Que venha 2022!


João Pedro Conchon é graduado em Jornalismo pela UEL. Embora não consiga na área atuar, o jornalismo sempre o atormenta, pois comprometeu-se eticamente com a profissão e se recusa a parar de roer este osso. Trabalhou como técnico de TI enquanto o coração se ocupava com a literatura. Agora dedica-se à escrita de um livro de ficção, alado e com chifres, que começa jovem e moderno, mas termina maduro e trágico. Tem gosto particular por contradizer o que o senso comum dos humanos gosta de reafirmar. E-mail: jpconchon@hotmail.com

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