Como as práticas de violência obstétrica ferem os direitos humanos?
Le Monde Diplomatique Brasil
atualizado 6 meses atrás
Por: Stephania Klujsza e Mariah Torres Aleixo
ueli Santos Adorno, uma mulher negra gestante de 35 anos, teve atendimento recusado em uma maternidade em Duque de Caxias, região metropolitana do Rio de Janeiro, em março deste ano. Ela acabou parindo o filho no chão da recepção da maternidade, de maneira completamente desassistida.
Alyne Pimentel, uma jovem mulher negra de 28 anos, de baixa renda e mãe de uma criança de 5 anos, grávida de 27 semanas, buscou uma maternidade privada que atende pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em Belford Roxo, também na região metropolitana do Rio. Era novembro de 2002, ela apresentava vômitos e fortes dores abdominais. Após ser medicada, foi liberada pelo hospital, mesmo sem ter apresentado melhora. Dois dias depois, voltou ao mesmo hospital e foi constatado que o feto estava morto. Assim, induziram o parto com o bebê natimorto, entretanto os restos da placenta só foram removidos cirurgicamente 14 horas mais tarde e sua família não foi autorizada a vê-la.
Alyne então, teve uma grave hemorragia digestiva e foi transferida para um hospital público na Baixada Fluminense. A ambulância levou oito horas para fazer sua remoção e o hospital que lhe atendeu não encaminhou o prontuário médico da jovem. Por falta de leito para internação, Alyne demorou muito para ser atendida, entrou em coma e faleceu cinco dias após buscar ajuda pela primeira vez.
A paraguaia Cristina Brítez Arce, de 38 anos, mãe de dois filhos adolescentes, de 12 e 15 anos, residente em Buenos Aires, na Argentina, e gestante do terceiro filho, compareceu a uma maternidade com dores lombares, febre e perda de líquidos. Numa ecografia realizada em junho de 1992, foi identificado um feto natimorto. Mesmo assim, ela foi internada e iniciada a indução de seu parto. Em quase cinco horas, ela foi levada à sala de parto com dilatação completa, no entanto, ficou ali esperando numa cadeira, onde veio a falecer horas depois, vítima de uma parada cardiorrespiratória. Ela havia manifestado problemas de pressão alta em todo pré-natal e isso não foi levado em consideração no momento em que procurou a maternidade para dar à luz.
Embora tenham acontecido em anos diferentes, em locais diferentes, as histórias de Queli, Alyne e Brítez têm em comum o tipo de violência sofrida, infelizmente muito frequente, mas ainda invisibilizada: a violência obstétrica. Casos como esses seguem acontecendo no cenário obstétrico brasileiro – e latino-americano – e colocam em risco a saúde, a vida e a dignidade das gestantes, parturientes e seus bebês.
De acordo com estudos realizados por nós duas que assinamos este texto e vinculados ao eixo maternidades violadas da Rede Transnacional de Pesquisa sobre Maternidades Destituídas, Violadas e Violentadas (REMA), a violência obstétrica é um termo que evidencia problemas que sempre existiram na assistência ao parto e que, no entanto, eram consideradas inerentes ao processo de parir e nascer. Historicamente, o termo surge em um contexto de intensas mudanças socioculturais que ressaltaram a necessidade de uma relação mais igualitária entre profissionais de saúde e usuários dos sistemas de saúde, a importância da autonomia da mulher quanto ao seu corpo e sexualidade e a promoção de direitos individuais e coletivos, segundo a pesquisadora Larissa Velasquez.
A noção de violência obstétrica emerge nos ativismos e nas pesquisas sobretudo porque no limiar do século XXI a reprodução passa a ser compreendida como uma questão de cidadania e direitos humanos e não como um “problema” demográfico e de desenvolvimento nacional, de acordo com Lynn Morgan e Elizabeth Roberts.
A violência obstétrica então, tem a ver com uma série de humilhações, dores, rebaixamentos morais, ofensas, negligências e intervenções não consentidas que gestantes, parturientes e puérperas podem vir a enfrentar em todo ciclo que envolve a gravidez, o parto, puerpério e situações de abortamento. Com a noção de violência obstétrica, ativistas, vítimas, profissionais e pesquisadores passaram a colocar em evidência e questionar a dificuldade de acesso à informação sobre a gestação e processo de parturição; peregrinação para conseguir atendimento médico; o uso indiscriminado – e de rotina – de intervenções sem consentimento, como uso de ocitocina sintética, rompimento da bolsa amniótica entre outros; cirurgia cesariana sem indicação clínica; não realização de cesariana quando ela é necessária; negativa de atendimento e de alívios da dor; a realização de quaisquer procedimentos invasivos e dolorosos sem o consentimento da mulher. O descumprimento da “Lei do Acompanhante”; realização da Manobra de Kristeller; impossibilidade de ser acompanhada por uma doula (caso seja seu desejo); desrespeito ao Plano de Parto, entre outros.
As possibilidades de ações que podem vir a ser consideradas violentas são muitas e a situação social de cada gestante/parturiente acaba mostrando o tipo de violência obstétrica mais provável de acontecer com ela ao longo do ciclo gravídico puerperal. O tipo de violação varia junto com a diversidade de pessoas que gestam e seus contextos de atendimento à saúde.
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