Repórter forjado entre a terra e a história                                                                                                        

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 8 horas atrás


Chamar José Hamilton Ribeiro de repórter consagrado é pouco. Ele é um narrador do Brasil. O repórter que cobriu a guerra do Vietnã. Um homem que uniu o rigor da apuração à beleza da forma. Que mostrou que a sabedoria da terra pode conviver com a sofisticação da escrita. E que, mesmo sendo “um caipira”, escreveu páginas fundamentais do jornalismo no brasileiro.

Por Isadora Chanan

Aos 89 anos, José Hamilton Ribeiro é sinônimo de jornalismo no Brasil. Considerado “Príncipe dos Repórteres” e também de “Repórter do Século”, é um dos nomes mais premiados da imprensa nacional: 97 prêmios Esso e o reconhecimento internacional em 2008, ao receber o Prêmio Especial da Imprensa da ONU. Sua trajetória atravessa o rádio, a imprensa escrita, as revistas e a televisão. Mais do que informar, ele sempre narra — e é nisso que se diferencia. Em cada texto, um olhar, uma cadência própria que o aproxima da literatura. Sua narração é marcada por um estilo só seu, que atravessa temas diversos, da violência de uma guerra à vida rural de pequenos agricultores.

Nascido em Santa Rosa de Viterbo, no interior de São Paulo, carrega consigo o que muitos chamam sabedoria da roça. Com gosto pela terra, pela vida simples e pelas palavras bem escolhidas, ele cresceu longe dos grandes centros, mas com uma curiosidade que o levou aos lugares mais inesperados. “Você fica muito curioso para ver o que tem além disso”, refletiu certa vez, sobre o que o levou ao jornalismo em entrevista de Fábio Victor para a Folha de S. Paulo, em 2024. (https://youtu.be/AOc3aiyzNrY?si=z1fabgrOstMd235y)

Sua escrita é conhecida por ser descritiva, sensível, profunda — capaz de levar o leitor até o cenário dos fatos, como em O Gosto da Guerra, publicado em 1969, texto em que relata sua experiência na Guerra do Vietnã (conflito que ocorreu entre 1955 e 1975, envolvendo o Vietnã do Norte, comunista, e o Vietnã do Sul, capitalista, com forte participação dos Estados Unidos. Marcando a luta entre comunismo e capitalismo, durante a Guerra Fria).

O conflito no Vietnã causou milhões de mortes e deixou profundas consequências sociais e políticas. Lá, Hamilton perdeu parte da perna ao pisar em uma mina terrestre. Mas lá também ganhou histórias, marcas e amizades, como a de Nguyen, intérprete e amigo, por quem guarda um carinho visível nos olhos. Como se pode perceber ao assistir ao vídeo “Um dos poucos jornalistas a cobrir a guerra, José Hamilton Ribeiro relembra explosão de mina”.

 (https://youtu.be/AOc3aiyzNrY?si=9pP_4s3qehCd8cBh)

Nguyen, que sonhava em ser jornalista, acompanhou Ribeiro durante a cobertura da guerra no país. Em diversas entrevistas ele mostra como a guerra, para ele, não era só um fato, era uma vivência a ser compreendida e, acima de tudo, partilhada. Na mesma entrevista para a Folha de S. Paulo ele conta sobre esse período, discute não apenas as experiências que viveu como também as pessoas que conheceu. Uma delas foi o fotógrafo japonês Shimamoto, com quem trabalhou no Vietnã. Hamilton revela que chegou a desejar que o fotógrafo viesse trabalhar com ele na revista Realidade no Brasil, projeto do qual foi um dos fundadores. Mas, Shimamoto morreu antes que isso pudesse acontecer.

Zé é conhecido por sua relação honesta com a simplicidade. Ele acredita que o que parece pequeno pode conter grandes verdades, que o jornalismo tem o dever de revelar. Quando a censura da ditadura militar se impôs, ele optou por sair da grande imprensa em 1974. Passou a se dedicar ao jornalismo regional, transformando jornais do interior de São Paulo em espaços de excelência jornalística.

A democracia, para ele, é um valor essencial. “A democracia, com todos os defeitos que tem, é sempre melhor que a ditadura”, afirmou para Marcelo Tas,  no  programa Provocações, em 2019, na TV Cultura.

 (https://youtu.be/guVb97UagyI?si=RShxLWbILIP93zqS)

Na televisão, virou rosto conhecido como principal repórter do Globo Rural, na Rede Globo de Televisão, levando o Brasil profundo até as telas domingueiras. Em tudo que escreveu ou falou, há um estilo único, quase literário, onde o jornalista virava narrador, e o fato virava vivência.

Hoje, aposentado, vive entre São Paulo e o sítio no cerrado mineiro, na região de Uberaba. Com a idade ganhou um andar trôpego. Admite falhas de memória, mas a essência da trajetória profissional está viva em seus textos, registros e na voz pausada que ainda inspira tantos repórteres. Em sua casa, José cultiva hábitos de se exercitar em uma academia, tomar café após o almoço, apreciar uma pinga como bom caipira que é… e assim, manter o bom humor. Sua fala, afetada pela passagem dos anos, carrega uma familiaridade que muitos se lembram dos familiares mais velhos, que falam pausadamente, mas que guardam o conhecimento silencioso – a sabedoria de quem conhece o tempo e a terra.

Apesar de sua aparência simples e de um jeito caipira, José Hamilton Ribeiro não esconde apenas uma história, mas muitas: ele é o repórter que cobriu a barbárie da guerra, o jornalista que viveu sob censura, o contador de histórias que transformou a dor em narrativa, o repórter que trouxe a roça para a casa de milhares de brasileiros. Assim, ainda é capaz de rir com facilidade, de celebrar uma boa prosa e de sentir falta da juventude.

Mesmo com a voz mais rouca e o passo mais lento, José Hamilton Ribeiro segue sendo uma referência para o jornalismo. O homem do campo que viu o mundo. Um dos narradores mais sensíveis da realidade brasileira — um repórter forjado entre a terra e a história. 


Isadora Chanan é estudante de Jornalismo na UEL, participa do Grupo Gabo de Pesquisa, com o projeto de IC: “Jornalismo literário em Gosto da Guerra, de José Hamilton Ribeiro” e da Revista Jornalismo & Ficção na América Latina.

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