Eu, autista

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 1 mês atrás


Descobrir-se autista já na vida adulta traz uma dose esperada de surpresa. Mas também traz respostas e certezas para o que antes era incompreendido. Acima de tudo, reforça que somos únicos, plurais e humanos.

por Juliano Quirino

Receber o diagnóstico de uma condição clínica que afeta o desenvolvimento psicossocial e motor não é simples. Ao mesmo tempo que oferece esclarecimentos sobre uma série de comportamentos antes incompreendidos, também provoca transformações profundas na vida de seu portador. Certamente não fui exceção ao ter a confirmação, aos 20 anos, de que era autista. Estava no nível 1 de suporte do Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Lembro-me bem daquela noite fria de outono, quando soube das conclusões dos testes que fazia já há alguns meses. Tomado por uma forte sensação de esgotamento e lotado de trabalhos acadêmicos, vivia um dos piores momentos da minha trajetória e ansiava por qualquer orientação profissional que me ajudasse a enfrentar aquele bloqueio. Seguindo protocolo, o neuropsicólogo, encarregado de meu caso, apresentou para minha mãe um relatório de toda a avaliação. Após o término da sessão, minha mãe me telefonou. A notícia confirmava o que ela, meu pai e tantos que acompanharam meu crescimento já suspeitavam: o apontamento de um quadro de autismo.

No momento, confesso ter sentido frustração e raiva. As conversas com minha psicóloga de então me levavam a acreditar que seria diagnosticado com Transtorno de Personalidade Limítrofe (ou “borderline”, como é mais conhecido). De acordo com o texto do blog de saúde Hapvida, este distúrbio se caracteriza por “um padrão de instabilidade contínua no humor, no comportamento, autoimagem e funcionamento”. Quase cheguei a contestar os resultados e, pasmem, a competência do profissional que me avaliou. Porém, estava enganado. Minhas experiências de vida, da primeira infância até a maturidade, eram a maior prova de que as conclusões do relatório estavam corretas.

Segundo a 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), o Transtorno do Espectro Autista é caracterizado por:

  • dificuldades na comunicação e interação social (tanto nas linguagens verbal e não-verbal, como na reciprocidade emocional);
  • padrões restritos e repetitivos de comportamento, sob a forma de movimentos contínuos (também chamados de “estereotipias”);
  • rotinas fixas ou interesses profundos por determinados assuntos (denominados “hiperfocos”);
  • sensibilidade baixa ou alta a estímulos.

Traços do espectro autista em meu comportamento eram visíveis desde cedo. Era comum que alinhar ou girar objetos, como tampas de panela, fosse o suficiente para conquistar o brilho de meu olhar. Nem preciso descrever com detalhes o êxtase que senti quando ganhei um pião metálico com listras coloridas de meu avô paterno. Ou quando fui contemplado por dezenas de cata-ventos, feitos especialmente por meu avô materno para decorar uma de minhas festas de aniversário.

A infância também foi terreno para interesses um tanto incomuns. Enquanto a maioria das crianças tinha obsessões esperadas por seus personagens de desenho animado e brinquedos prediletos, eu era o menino que contava quantas antenas parabólicas avistava em telhados durante uma volta de carro. Também conhecia todos os modelos de jipes e comparecia aos encontros de entusiastas de veículos 4×4 da cidade. Para completar, sabia falar, com alguma propriedade, de supostos casos de aparição de alienígenas e objetos voadores não-identificados (OVNIs), acreditando fielmente que nunca estivemos sozinhos no universo. Mesmo assim, a etapa da infância reservou suas dificuldades. Trocar de hábitos, amigos e lugares, tarefa fácil para ninguém, era especialmente complicado para quem se sentia tão diferente dos demais. A timidez e a inabilidade para lidar com um mundo de entrelinhas, nuances e pontinhas de ironia tornavam cada experiência social inédita um pesadelo terrível.

Com o tempo, muita coisa mudou, mas recapitular a própria história me fez perceber que aquele resultado fazia muito sentido. Agora, eu era parte de 1% da população mundial que vive no espectro, segundo estimativa do Center of Diseases Control and Prevention (CDC), dos Estados Unidos. O choque, diante do que diziam aqueles exames e o laudo médico que viria depois, era algo a se esperar. Afinal, uma informação como essa dita novos rumos. Hoje, tenho plena consciência de que sou neuroatípico, aquele com desenvolvimento neurológico que foge do que é considerado “padrão”. Ou seja, sou diferente da maioria. Mas também tenho consciência de que é na diferença que nos tornamos únicos, singulares, particulares, e, portanto, humanos.


Juliano Quirino é estudante do quarto ano de jornalismo na UEL e participa da Revista Jornalismo & Ficção na América Latina