Apostando Alto
Revista Jornalismo & Ficção
atualizado 17 horas atrás

Não é segredo para ninguém que os jogos de aposta on-line são perigosos. O Senado atualmente discute os riscos da influência digital para o vício em apostas e prejuízos para espectadores e jogadores de renda baixa ou média. Essa crônica acompanha um breve momento no dia de uma mulher simples, de muita esperança, que confia cegamente em uma influenciadora. O vício nos jogos on-line de apostas tornaram miserável a vida de Maria.
Por Luiza Zottis
Maria acordou de rosto amassado, suor no corpo. Pegou o celular. Foi ao banheiro, fez xixi, cuspiu na pia. Pegou o celular. A porta está quebrada, o sol é quente, o ventilador quase não é potente. Pegou o celular. A Mulher Loira na tela está falando, e caso deslize por trinta vezes o polegar na tela ela vai continuar falando. Ela não mostra portas quebradas ou ventiladores que fraquejam. Mostra maquiagem chique, uma mansão, um clube, e os filhos. Ela mostra bastante os filhos.
Maria quer isso. Quer comprar as mansões, quer comprar aquelas maquiagens, comprar o clube, comprar aqueles filhos. Mas não tinha como, e também não tinha nada. Alguns móveis importantes faltavam em sua casa. O suporte de micro ondas estava vazio, na prateleira não havia televisão e o lugar ao lado da pia onde deveria estar o forno pegava poeira e teias de aranha. Dormia em um colchão no chão, e fazia tempo que não saía. De fato, só lhe sobraram a geladeira, o colchão murcho e o celular. Seu avô vendeu o leite dos filhos para uma briga de galos. Seu pai nunca conseguiu um terreno por causa dos números de bicho. Ela não conseguia mais emprego por conta de um tigre. E da Mulher Loira na tela, é claro.
Mas Maria não diria isso, a mulher é boa, está tentando lhe ajudar, lhe inspirar. Ela apenas fica confusa de vez em quando, não é sempre. A loira na tela diz “comprem meus produtos, ganhem dinheiro e os comprem.”. Maria tem um ou outro perfume dela, dos quais gostava muito, tratava com grande apreço, mas eles eram caros e muita gente não podia comprar. A loira então apareceu com a salvação. “Baixem esse aplicativo. Joguem esse jogo. Vai dar muito dinheiro e então comprem meus produtos!”
Maria baixou, e como fez a Mulher Loira no vídeo de exemplo, conseguiu ganhar uns trocados. Antes seu salário apenas passava pela conta no banco, escorria por seus dedos feito água, mas graças aos conselhos agora ela conseguiu comprar um perfume, comprar um docinho que há muito estava de olho na vitrine da padaria, comprar o suplemento que a Mulher Loira disse ser bom. Mas então, começou dar errado.
A Mulher Loira jogava quase todos os dias em seus vídeos, e sempre ganhava, sempre. Maria achava que era assim que ela conseguia casas tão enormes e filhas tão bonitas. Mas Maria não sabia como fazer para ganhar tanto. Ela começou a perder, quantia após quantia. “Baixem o aplicativo, joguem o jogo. Ganhem dinheiro e comprem o que vendo.” O salário continuou escorregando do banco, mas ia direto para o jogo.
Maria tentava uma, duas, três vezes ao dia. Quatro, cinco, seis vezes ao dia. O infinito conteúdo nunca parava. Se a Mulher Loira conseguia, afinal, Maria também conseguiria! Sete, oito, nove vezes ao dia. Dez reais que somem, cinquenta; cem. Maria já não consegue mais fechar a conta de água e passa a tomar banho na casa de seu irmão. Duzentos; trezentos; quinhentos, Maria não trabalha mais como antes. Mil, mil e quinhentos, Maria vendeu o micro-ondas e a televisão.
Por não trabalhar mais como antes, Maria foi demitida. Mas não havia problema, ela possuía agora outra fonte de renda. Pediu dinheiro emprestado a seu irmão, apenas pra tentar se reafirmar. O dinheiro era pra pagar as contas de água e mercado, mas a Mulher Loira saberia dobrar esse valor. Maria tentou de novo, e perdeu toda a quantia.
Logo a energia e a internet seriam cortados…talvez quando parasse de assistir a Mulher Loira se sentiria menos mal consigo mesma. Talvez quando parasse de ter como jogar com aquele aplicativo poderia arrumar outro emprego.
Mas Maria, no fundo de sua verdade, sabia que arrumaria um jeito. Que usaria a internet da padaria, e tentaria um jeito de conseguir o dinheiro para aquele bolo gostoso da vitrine. Que em outro emprego, usaria o salário para jogar o jogo, e o dinheiro do jogo pra comprar o perfume. “Baixem o aplicativo. Joguem o jogo. Comprem os meus produtos. Medeem seus lucros!” Maria entregaria, sem a menor queixa.
Caso ainda tivesse sua televisão Maria saberia que Mulher Loira, em pleno evento do Senado, afirmou não saber de nada. Não acreditar causar grandes prejuízos a ninguém.
A Mulher Loira, afinal, é inocente.
Já Maria, culpada.
Luiza Zottis é estudante de Jornalismo na UEL, participa do Grupo Gabo de Pesquisa, onde desenvolve estudos sobre Machado de Assis e as crônicas jornalísticas e faz parte da equipe da Revista Jornalismo & Ficção na América Latina.