O fascínio (e a ascensão) do true crime como gênero literário

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 2 dias atrás


Imagem Tainara Gomes

Mais do que registrar fatos, o true crime narra casos criminais de forma linear, dramatiza situações e acrescenta um “Q” de mistério, um “Q” de literatura. De coadjuvante a protagonista, o true crime conquistou status de fenômeno cultural. O que antes se limitava a breves relatos de crimes na imprensa passou a alimentar a curiosidade e o fascínio do público atual, transformando esse tipo de conteúdo em gênero.

Por Bela Garcia

De coadjuvante nas páginas dos jornais a protagonista de podcasts, séries e livros, o true crime conquistou status de fenômeno cultural. O que antes se limitava a breves relatos de crimes passou a alimentar a curiosidade e o fascínio do público, transformando-se em gênero próprio e influenciou a cultura pop mundial nas décadas seguintes (França e Simões, 2016). Hoje, ocupa prateleiras inteiras em livrarias, domina os rankings de vídeos mais vistos e ganha espaço fixo em grandes portais de notícias. Mais do que registrar fatos, o true crime narra casos criminais de forma linear, dramatiza situações e acrescenta um “Q” de mistério, um “Q” de literatura.

No entanto, o fascínio por crimes reais não é novidade. Notícias sobre investigações e julgamentos sempre despertaram a curiosidade de leitores. O que mudou foi a forma de narrar. Hoje, o true crime é mais amplo: deixou de ser apenas um registro factual para se transformar em narrativa, explorando a complexidade das histórias, o perfil psicológico dos envolvidos, as falhas do sistema de justiça e até os impactos sociais de cada caso, a exemplo do podcast Café com Crime (Zorovich, 2020).

Antes as informações sobre casos criminais eram apenas notícias rápidas para saciar a curiosidade, mas tornaram-se motor do sucesso de diversos programas, filmes, perfis em redes sociais e, por vezes, assumem contornos sensacionalistas que priorizam o impacto emocional do público — um fenômeno que remete à lógica da espetacularização descrita por Guy Debord, ao observar a transformação do real: “Lá onde o mundo real se converte em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico” (Debord, 2005, p. 13).

Nesse cenário, a popularização do gênero abriu espaço para novas vozes, que discutem o tema em blogs, podcasts ou colunas especializadas. É o caso da blogueira Ju Cassini, que acompanha o gênero de perto e compartilha suas impressões com o público. Em entrevista concedida à Folha de S. Paulo, ela refletiu sobre as razões que explicam o fascínio coletivo. Para Ju, a curiosidade é um dos principais motores para esse interesse: “Principalmente porque vemos coisas absurdas que jamais pensaríamos em fazer. Nos questionamos o que essa pessoa pensou, o que a levou a fazer isso. Essa questão psicológica é bem interessante”, afirmou. Ju também destacou que muitas pessoas recorrem ao gênero como forma de autoproteção. “Você quer saber como poderia se proteger em uma situação como aquela”. (Por que sobrenatural e true crime fazem tanto sucesso? – 12/03/2024 – Folhateen – Folha)

Apesar do crescimento recente, o marco do true crime remonta a 1966, com a publicação de A Sangue Frio, de Truman Capote (2021). O livro narra o brutal assassinato de uma família no interior dos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, mergulha na mente dos criminosos e no ambiente que os cercava. Capote não inventou a prática de relatar crimes reais, mas revolucionou o gênero, mostrando que era possível combinar a densidade de um romance com a precisão de uma reportagem investigativa — uma abordagem que inspirou o que hoje chamamos de true crime (Stott, 1991).

O engajamento do público nesses conteúdos é moldado pelos algoritmos, que priorizam materiais de alto impacto, como horror, tragédias e violência (Bonn, 2014). Dessa forma, a ampla divulgação midiática de casos criminais funciona como uma forma de manter a audiência e explorar a curiosidade do público mediante especulações. Como confirma Adriana Cardoso Nogueira em Violência nos telejornais: a realidade espetacularizada: “[…] as análises morfológicas e de conteúdo realizadas indicam que a espetacularização da ‘realidade’ não pode ser enfocada de forma isolada, pois as estratégias utilizadas pelos meios de comunicação baseiam-se na fragilização das instâncias de percepção dos espectadores. Entre essas estratégias encontram-se as imagens da violência quando existentes e os discursos vazios” (2000, p. 9).

Mas por que sentimos tanta atração pelo lado sombrio da natureza humana? Por que acompanhamos com tanta atenção julgamentos, documentários e livros que detalham crimes bárbaros? Essas narrativas oferecem, ao mesmo tempo, segurança e desconforto: segurança porque estamos do lado de fora, observando; desconforto porque as histórias lembram que a violência não é uma ficção distante, mas parte do cotidiano — um cotidiano que, por vezes, escapa à compreensão.

Ao transformar a violência em narrativa, o true crime nos oferece algo raro: a possibilidade de observar o lado obscuro da humanidade sem nos perdermos nele.

Referências:

BONN, Scott. Why we love serial killers: the curious appeal of the world’s most savage murderers. New York: Skyhorse Publishing, 2014.

CAFÉ COM CRIME. Apresentação: Stephanie Zorovich. [S.l.]: Independente, 2020. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/show/3PAHKTRZjox0zIRn8TCOmo. Acessado em: 20/09/2025

CAPOTE, Truman. A sangue frio. São Paulo: Companhia das Letras, trad:Sérgio Flaksman, 2021.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Lisboa: Edições Antipáticas, 2005.

FRANÇA, Vera; SIMÕES, Paula. Curso básico de teorias da comunicação. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

NOGUEIRA, Adriana; CARDOSO. Violência nos telejornais: a realidade espetacularizada. 2000. Dissertação (Mestrado em Multimeios) – Instituto de Artes, Unicamp, Campinas. Disponível em: https://www.repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/222400 . Acessado em: 04/07/2025.

STOTT, William. The Art of Fact: A Historical Anthology of Literary Journalism. New York: The Modern Library, 1991.


Bela Garcia é estudante de Jornalismo na UEL, participou do Grupo Gabo de Pesquisa, com o projeto de IC: “A Sangue Frio de Truman Capote – o True Crime como Jornalismo Literário” e faz parte da redação da Revista Jornalismo & Ficção na América Latina.

Tainara Gomes é estudante do curso Design Gráfico da UEL. Estagiária responsável pelas redes sociais e toda comunicação tanto digital quanto física do sistema de bibliotecas da UEL. Participa do Grupo Gabo de Pesquisa e da revista Jornalismo e Ficção na América Latina.

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