Mulher dos olhos d’água 

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 3 semanas atrás


Imagem Tainara Gomes

A voz de minha bisavó 
ecoou criança 
nos porões do navio. 
ecoou lamentos 
de uma infância perdida. 

A voz de minha avó 
ecoou obediência 
aos brancos-donos de tudo. 

A voz de minha mãe 
ecoou baixinho revolta 
no fundo das cozinhas alheias 
debaixo das trouxas 
roupagens sujas dos brancos 
pelo caminho empoeirado 
rumo à favela. 

A minha voz ainda 
ecoa versos perplexos 
com rimas de sangue 

fome. 

 
A voz de minha filha 
recolhe todas as nossas vozes 
recolhe em si 
as vozes mudas caladas 
engasgadas nas gargantas. 
A voz de minha filha 
recolhe em si 
a fala e o ato. 
O ontem – o hoje – o agora. 
Na voz de minha filha 
se fará ouvir a ressonância 
o eco da vida-liberdade. 

– Vozes-Mulheres, por Conceição Evaristo.

Por Luiza Zottis

Quando Milton Nascimento escreveu “É preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre. Quem traz no corpo a marca, Maria, Maria, mistura a dor e alegria.”, na canção Maria, Maria, ele poderia muito bem estar falando de uma Maria em específico, que com o poder de suas palavras, misturou miséria e orgulho, injustiça e beleza, mostrou ao mundo essa dualidade.  

Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em 1946, em uma periferia de Belo Horizonte. Uma mulher negra de Minas Gerais conquistou a literatura internacional com seus textos sensíveis, expositivos e importantíssimos socialmente.  Formada em Letras pela UFRJ e doutora em literatura comparada na UFF, tornou-se uma escritora renomada no cenário literário atual. Seus livros já são estudados academicamente e considerados relevantes para a literatura nacional. 

De origem humilde, Conceição teve desde criança o fantasma da pobreza assombrando-a. Gosta de dizer que não cresceu rodeada de livros, precisou aprender, muito nova, colher as palavras. Em 1958, no final do primário, ganhou seu primeiro prêmio de literatura em uma competição escolar, com o título “Por que me orgulho de ser brasileira”. 

Conceição se mudou para o Rio de Janeiro na década de 70, em busca de oportunidades de trabalho, estudo e principalmente de literatura. Foi apenas em meados dos anos 90 que passou a publicar textos na série “Cadernos Negros” do Grupo Quilombhoje. Desde lá, se destacou por uma postura sensível e crítica ao discorrer sobre a história do povo negro brasileiro. Seus manuscritos publicados possuíam um olhar muito cotidiano, uma atenção ao sofrimento, ao racismo e a pobreza que gritava nas pequenas coisas. 

“Escrivivência” foi o termo inventado por Conceição Evaristo para definir seu modo de escrita. Acontecimentos comuns do dia-a-dia, marcados pelas memórias e angústias da população racializada.  

Em 2003, o romance Ponciá Vicêncio foi publicado como seu primeiro livro. Retrata a trajetória de uma mulher chamada Ponciá das memórias de sua infância até as dificuldades da vida adulta, vinda de uma família descendente de escravos e tentando a sorte de uma vida melhor na cidade grande. Uma narrativa não-linear, marcada por presente e passado, imediatamente reconhecida pelo público. A dor do racismo, da pobreza e da herança escravista atuam como fantasmas narrativos, marcam presença até nos menores detalhes. Até os dias de hoje, esse livro é estudado como fonte para artigos e ensaios acadêmicos.  

Outra obra marcante em sua carreira foi Olhos D’Água. O livro é uma coletânea de contos, também em maioria sobre vivências negras e periféricas, apelam para um lado emocional e inerentemente humano na construção narrativa. A maioria dos títulos encontrados no livro são nomes próprios, como “Ana Davenga”, usados para gerar identificação. Conceição tirou até mesmo de seu próprio nome, “Maria”, para nomear um de seus contos mais fortes e intensos.  

E, claro, o próprio conto que dá título ao livro, os Olhos D’Água. O eu-lírico relembra memórias de infância, enquanto tenta descobrir qual a cor dos olhos de sua mãe. Momentos de alegria entre mãe e filha mesmo em momentos de dificuldade se atrelam com a agonia do eu-lírico em não se lembrar dos olhos da própria mãe, que ao final do conto, conclui que eram Olhos D’Água. Molhados por lágrimas e chuva, por tristeza e alegria, e conclui esse ciclo com a sua própria filha, que lhe faz a exata mesma pergunta sobre a cor dos olhos. 

Esses foram os primeiros sucessos de muitos, Evaristo continuou escrevendo e estudando linguística e literatura, publicou diversos romances, contos e poesias ao longo dos anos. Seu modo de escrita foi tão bem reconhecido, que em 2019 levou a nomeação de Personalidade Literária, pelo Prêmio Jabuti.   

“Escrevo. Deponho. Um depoimento em que as imagens se confundem, um eu-agora a puxar um eu-menina pelas ruas de Belo Horizonte.” Concluiu Conceição Evaristo, sobre si mesma, em uma declaração para o portal de literatura afro-brasileira, “Literafro”, da UFMG.    

E como na canção atemporal de Milton Nascimento, Conceição é uma Maria que representa diversas outras Marias do Brasil. É uma inspiração direta para jovens meninas, negras, pobres, de todo tipo, que tem um sonho e uma curiosidade pela literatura. 

Conceição se tornou uma inspiração para a comunidade literária latino-americana. Uma autora que provou as dores do racismo, da pobreza e da miséria desde criança, e transformou todo esse amargor em arte. Ela denuncia e critica a sociedade em suas obras, sem deixar de lado a emoção, a humanidade e os detalhes que outras mentes deixariam passar em branco. Evaristo é uma mulher atenta e inspiradora, capaz de converter dores em belezas e belezas em dores apenas com um papel e uma caneta.  


 Luiza Zottis é estudante de Jornalismo na UEL, participa do Grupo Gabo de Pesquisa onde desenvolve estudos sobre “Machado de Assis e suas crônicas jornalísticas” e faz parte da equipe da revista Jornalismo&Ficção na América Latina.

Tainara Gomes é estudante do curso Design Gráfico da UEL. Estagiária responsável pelas redes sociais e toda comunicação tanto digital quanto física do sistema de bibliotecas da UEL. Participa do Grupo Gabo de Pesquisa e da revista Jornalismo e Ficção na América Latina.

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