Arte, memória e afeto

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 8 horas atrás


Foto: Arquivo Pessoal

Quando Carmen Mattos entrou para a Universidade Aberta à Terceira Idade (UNATI), já vivia com Alzheimer em estágio inicial. A doença avançaria aos poucos, mas a arte se manteve como ponto de apoio e ponte com o mundo. Participava das oficinas e rodas de conversa com entusiasmo. Ali, era ouvida, acolhida, estimulada a lembrar e a criar. O ambiente intergeracional fazia brilhar nela a vontade de trocar histórias com os jovens e de continuar descobrindo.

Por Cauã Ferranti

Maria do Carmo Lopes de Mattos, carinhosamente chamada de Carmen, participava de atividades da Universidade Aberta à Terceira Idade (UNATI). Nessas oficinas ela materializou as suas memórias mais antigas. Dona Carmen faleceu aos 93 anos de idade. Mesmo tendo partido, a sua passagem pela UNATI ainda é lembrada.

Era uma terça-feira, 26 de setembro de 2023. A UNATI construía mais um dia da oficina de Artes e Desenhos, ministrada pela professora Maria Irene Pellegrino de Oliveira, do Centro de Educação, Comunicação e Artes. No encontro em que os participantes desenhariam memórias ou o que viesse à cabeça com pincéis, canetas e tintas, destaca-se dona Carmen, uma senhora de 92 anos com Alzheimer. Dona Carmen tinha um jeito encantador, chamava atenção pelos comentários astutos até sobre a insegurança da arte que criava.

Dona Carmen sempre estava acompanhada de uma estudante de Pedagogia, cuja tarefa era auxiliá-la. A doença neurodegenerativa e a locomoção limitada exigiam atenção permanente. A sua participação nas atividades da UNATI era de praxe, pois ela sempre estava presente, seja na Oficina de Memória ou nas rodas de conversa que ocorriam — e ocorrem — toda terça-feira às 14h.

Naquela tarde nublada de terça-feira, Dona Carmen parecia insegura com a ideia de desenhar, então começava a questionar Maria Irene sobre a atividade e a arte. Por causa da doença, ela havia se esquecido do nome da professora e de algumas características da atividade. Porém, depois de ser estimulada pela professora, por outras participantes e alunos de Jornalismo — integrantes do projeto — Dona Carmen começou a desenhar.

Não daria para imaginar o que ela desenharia, muito menos pensar que significados poderiam ter o seu desenho. Em poucos minutos, contudo, sua arte ganhou vida, formas, traços e cores. Uma obra genuinamente artística. Enquanto a casa surgida no desenho tomava forma, as roupas coloridas e os rostos, que um dia foram tão vívidos ao olhar, conquistaram fisionomias.

Dona Carmen poderia esquecer-se de nomes, funções ou até mesmo acontecimentos recentes, mas, naquele dia, lembrou-se do que aconteceu há mais de 50 anos: o dia em que se mudou com o marido para a casa nova. Dona Carmen não apenas materializou lapsos de memórias, como descreveu verbal e artisticamente tudo o que aconteceu. O marido usava as mesmas roupas, a casa rabiscada no papel era parecida com a casa original. E o mais impactante: as lágrimas que lhe escaparam eram genuínas. A emoção que tomou conta dela expandiu para todo o ambiente.

Desenho e pintura — formas de expressão artísticas — podem ser eficazes para estimular a memória e tratar pacientes com Alzheimer. A interação social, a expressão emocional, a estimulação da cognição e a memória são características que a arte pode apresentar. Esses são apontamentos da psicóloga e doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP), Erika Rodrigues Colombo, feitos para o Jornal da USP: “Arteterapia produz efeitos positivos no tratamento de doenças mentais e físicas”.

Foto: Cauã Ferranti

Dona Carmen pode ter se esquecido do nome Maria Irene, professora que ela encontrou em diversas terças-feiras. No entanto, naquele dia, ela desenhou traços de uma vida, emocionando professores, participantes, alunos, levando o autor deste texto a engolir o choro. Foi essa sensação que me inspirou a digitar essas lembranças. As memórias de Dona Carmen ainda reverberam e se entrecruzam com as minhas. Em homenagem à Dona Carmen, finalizo este texto com o seu poema favorito, e que, coincidentemente ou não, tornou-se reflexo, ou melhor, um autorretrato de Maria do Carmo Lopes de Mattos:

AUTO-RETRATO, de Mário Quintana

No retrato que me faço
– traço a traço –
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore…
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança…
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão…
e, desta lida, em que busco
– pouco a pouco –
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança…
Terminado por um louco!

IN MEMORIAM

A necessidade de imortalizar um pouco da história de Maria do Carmo Lopes de Mattos em material jornalístico sempre esteve em meus pensamentos. Eu me emocionei quando a conheci e continuo me emocionando ao saber mais sobre sua trajetória.

Conversando com Christina Mattos, sua filha, perguntei o que caracterizava sua mãe e, então, surpreendi-me: Dona Carmen queria ser violinista, mas ser violinista não era o que o destino havia reservado para ela.

Ela não conseguiu estudar muito, completando apenas o primário. Tornou-se dona de casa e criou quatro filhos. Encontrou refúgio na arte. Pois, na arte, não importa se você tem mestrado, doutorado ou apenas o ensino fundamental. Ela costurava, tricotava, bordava e fazia bonecas de pano — e fazia tudo muito bem.

Quando os filhos cresceram, ela se aprofundou na pintura. Pintou cerâmicas e telas, e seus quadros estão, até hoje, nas casas de seus filhos. No campo fértil da arte, Dona Carmen plantou e semeou.

Começou, aos 70 anos, no teatro com o Grupo Fase 3 — e não parou mais. Em 2000, Carmen pisou no palco pela primeira vez com a Cia. de Theatro Fase 3, sob direção de João Henrique Bernardi. Com o grupo, viajou o Brasil e também apresentou espetáculos na Dinamarca, Noruega, Inglaterra. Quando Bernardi faleceu, em 2014, e a companhia chegou ao fim, ela não parou.

Foto: Arquivo Pessoal

Já não decorava os textos, mas os colegas preparavam plaquinhas com suas falas. Ela lia no seu tempo, do seu jeito, e era recebida sempre com carinho. Se errava, tudo bem. O que importava era estar ali. O palco ainda dava a ela algo essencial: vontade de viver.

Mesmo com Alzheimer, ela recitava o poema Auto-Retrato, de Mário Quintana. Sempre à procura de algo novo. Independentemente das dificuldades, Dona Carmen acordava e perguntava. “O que tem para eu fazer hoje?” Ela queria viver. Ela vive. Nos quadros. Nas bonecas de pano. Nas memórias de quem assistiu suas apresentações teatrais.   

Dona Carmen não se tornou violinista, mas isso não é mais o que importa. Sua vida ecoa como um instrumento erudito que produz as notas mais doces e esperançosas. Notas que não chegam apenas aos ouvidos, mas que tocam todos os sentidos, produzindo uma sinestesia pura.

Ela atuou até seus últimos dias de vida. Atuou em apresentações em outubro até primeiro de novembro de 2024. Carmen faleceu no dia 3 de dezembro de 2024. Escrevo com os olhos aguados por lágrimas de esperança e de otimismo. Um agradecimento especial à filha de Dona Carmen, Christina Mattos, que enviou os dados para a ampliação do texto e das memórias de Carmen. Eu sinto Maria do Carmo Lopes de Mattos!


Cauã Ferranti é estudante de Jornalismo na Universidade Estadual de Londrina e ex-bolsista da UNATI. Texto originalmente escrito para a disciplina Assessoria de Imprensa II, ministrada pelo Professor Dr. Reinaldo Zanardi.

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