A boiada estourou na calada da noite
Revista Jornalismo & Ficção
atualizado 19 horas atrás

Em uma votação promovida na madrugada do dia 16 para o dia 17 de julho de 2025, a Câmara dos Deputados aprova, sem a participação popular, o projeto de lei que empurra o país para a beira do abismo. A aprovação do projeto de lei também pode acelerar o licenciamento de “projetos estratégicos” do governo, tal qual a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas.
Por Maria Julia Pimenta
Em algum momento entre o café da manhã e o almoço, meu irmão caçula entra no meu quarto para falar algo a respeito de um vídeo de curiosidades que estava assistindo e se depara comigo olhando catatônica para o celular. “Eles aprovaram o PL”, eu falo baixo, tentando assimilar tudo.
Mais do que isso, pensando em como vou explicar para o pré-adolescente na minha frente que a Câmara Legislativa do país que vivemos, formada por homens e mulheres que deveriam presar pelo bem de toda a população e território brasileiro, usou a calada da noite para aprovar o projeto de lei que estourará barragens por todo o país.
Desde que passou pela aprovação do Senado, em maio, eu comecei a acompanhar mais de perto o Projeto de Lei 2159 de 2021, apelidado carinhosamente pelos ambientalistas de “PL da Devastação” e considerado “a maior das boiadas” pelo Greenpeace, mostrando como essa proposta está sendo vista pela comunidade fora de Brasília.
Não se trata apenas de um projeto de lei ressuscitado de 2021 e que convenientemente passou a ser tratado com urgência no congresso. Ele faz parte de um grande emaranhado estratégico que abalará o ar, a terra e o mar.
Em busca de mais informações e tentando entender o que toda essa movimentação significa, conversei com o professor do curso de Geografia da UEL, Marcelo Gonçalves, que já começou me explicando que esse projeto “de bom não tem nada”. Ele visa mudar aspectos da lei do Licenciamento Ambiental, responsável por basear normas e regras para que empreendimentos de todos os tipos, como mineradoras, construção de barragens, rodovias, loteamentos, exploração de petróleo, entre outros, precisam seguir para serem executados causando o menor impacto ambiental – e consequentemente social – possível.
O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) é o mais comumente solicitado para adquirir uma licença ambiental de diversos tipos, e como já diz o próprio nome, sua função é observar o ambiente (natural e social), pontuando todas as formas de vida e tipos de relação entre o meio e a população que pode estar vivendo no espaço.
O estudo então é submetido às autoridades fiscais pelo responsável pelo empreendimento, provando com a assinatura de profissionais capacitados – biólogos, engenheiros, geógrafos – que a proposta de empreendimento é segura e trará benefícios para todos os envolvidos: empreendedor, sociedade e natureza.
Porém, para a elaboração e endosso do PL foi usado o pressuposto que o andamento dos processos de licenciamento em todo o país é considerado lento e ineficiente, baseando assim a flexibilização da legislação que rege o Licenciamento Ambiental, prevendo tipos de documentação que colocam na palavra do proprietário do empreendimento, a promessa de que cumprirá as leis ambientais, sendo necessário apenas descrever o seu projeto e enviar para os órgãos competentes, sem qualquer tipo de estudo ambiental anexado.
Em minha busca por respostas sobre essa flexibilização dos estudos, encontrei uma entrevista de Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, à Agência Brasil, que afirma: “a maior parte dos licenciamentos vão ficar na forma de Licença por Adesão e Compromisso (LAC). Isso significa, na prática, um autolicenciamento”.
Ela explica que somente 10% dos empreendimentos submetidos a emissão de licença são considerados de grande porte, enquanto 90% são de pequeno ou médio porte, e esses por sua vez, estão previstos para a necessidade somente da LAC para saírem do papel. Leia mais na matéria da Agência Brasil.
Vale lembrar que empreendimento minerários como os de Brumadinho e Mariana não são considerados de grande porte ou grande impacto. Seria possível, somente com uma LAC, novos projetos desse tipo serem aprovados para execução.
Esse ponto vem sendo o principal motivo de críticas ao projeto de lei, pois a forma que foi escolhida para adiantar os processos de licitação não foi contratar mais profissionais que avaliam os estudos ou desenvolver melhores sistemas de processamento de dados, mas simplesmente passar tudo com mais facilidade, sem prestar atenção no que está acontecendo, como se um médico sobrecarregado, para liberar atendimentos, juntasse todos os pacientes na fila de espera do hospital e falasse “quem veio por conta de dor de garganta e espirro é porque está gripado, então pode ir embora” sem nem mesmo avaliá-los.
O déficit de pessoal, somado com a qualidade inferior dos EIA prejudica muito mais o andamento do sistema do que as normas que devem ser seguidas. Suely aponta que muitas vezes os estudos precisam ser enviados de volta ao responsável pelo empreendimento para serem corrigidos, isso é o que mais retarda o andamento do licenciamento do que qualquer norma ou lei ambiental.
O PL também estipula que órgãos públicos como o ICMBio, FUNAI e IPHAN terão sua influência reduzida a apenas considerações sobre projetos que possam prejudicar o meio ambiente ou populações protegidas como indígenas, quilombolas e ribeirinhas, enquanto hoje possuem ainda o poder de veto de propostas de empreendimentos.
A aprovação do projeto de lei também surge convenientemente acelerando o licenciamento de empreendimentos considerados “projetos estratégicos” do governo, tal qual a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas, que um mês antes da votação na câmara, estava leiloando 47 novos blocos para petroleiras. Além da facilitação para destruir matas e abrir espaço para a pecuária, sendo pelo desmatamento ou o uso das queimadas.
São diversos projetos que estão sendo vetados – e com razão – pela lei atual que só estão esperando a execução da PL da Devastação para saírem do papel.
Em todas as minhas pesquisas, leituras e conversas, em busca de entender de fato o que estava acontecendo, encontrei pareceres técnicos e argumentos, mas nada ainda me tira a dúvida principal: como isso chegou a acontecer? Depois de anos de julgamento, processos, acordos e mais acordos devido a grandes desastres ambientais que foram causados por irregularidades de execução e vistoria, soma agora esse movimento político que quebra ainda mais as pernas do que restou das leis ambientais?!
Agora, a decisão parte para o poder executivo. Ainda há silêncio no que acontecerá. Há movimentos no judiciário que pretendem vetar o projeto por inconstitucionalidade, assim como o presidente que também possui poder para parar o projeto, mas parece que o que resta a nós é observar e esperar para onde tudo isso vai dar.
Novamente volto ao início, como vou explicar para meu irmão o que está acontecendo? Como vou trazer lógica a essas tomadas de decisões que queimarão ainda mais o mundo que estamos tentando salvar? Não são só consequências que virão no futuro, vidas de pessoas em todo o país serão prejudicadas por essa decisão tomada na encolha.
Maria Julia Pimenta é geógrafa e estudante de Jornalismo na UEL, participa do Grupo Gabo de Pesquisa, com o projeto de IC: “Geografia e humanização: narrativas jornalísticas literárias sobre espaço e território” e da Revista Jornalismo & Ficção na América Latina.