É preciso dar um jeito, meu amigo
Revista Jornalismo & Ficção
atualizado 2 semanas atrás
“O fotógrafo reclamava: fiquem mais sérios, mais tristes, mais infelizes. Não conseguimos. Ou não queríamos. A irreverência sempre nos inspirou. Observo a foto hoje e vejo nos olhos da minha mãe: quem você pensa que é para nos fazer infelizes? Nos indignamos. Não é a imprensa que nos pauta, nós pautamos a imprensa.” – Marcelo Rubens Paiva, no livro Ainda Estou Aqui
Por Manuela Domingues
Assisti Ainda Estou Aqui na estreia, na primeira sessão do dia oito de novembro, em Londrina, no Paraná. Do meio até depois do final do filme, chorei por mais de uma hora sem parar. Eu sabia que o filme seria doloroso, sei o que foi a ditadura, e muito embora não consiga imaginar a dor de uma família ao perder o pai, imaginei que seria dilacerante ver aquilo. Mas foi diferente.
Conversando com um amigo – tão abalado quanto eu – na saída do cinema, ele disse algo que me ajudou a compreender o que Ainda Estou Aqui causa exclusivamente em nós brasileiros: assistir aos horrores da ditadura nos faz sentir uma dor conterrânea, comentou meu amigo. Uma dor só nossa. A dor de um horror que aconteceu na nossa terra com as nossas pessoas. Uma dor que nos deixa com um sabor familiar na boca.
No auge da ditadura militar, a casa da família Paiva é invadida. O ex-deputado Rubens, interpretado de forma apaixonante por Selton Mello, é levado sem muitas explicações para prestar depoimento. A partir do sumiço do pai da família, todos os olhos são voltados para Eunice, esposa de Rubens. Em Ainda Estou Aqui, Fernanda Torres traz vida a Eunice Paiva com uma atuação dilacerante.
Em entrevista à rádio britânica FRED, Fernanda Torres conta que se lembrou do conselho da mãe, Fernanda Montenegro, para interpretar Eunice: Na tragédia, você não pode chorar. A Eunice é uma mãe que precisa dar um jeito, precisa achar respostas, precisa fazer com que os filhos continuem vivendo, precisa lutar. Ela não tem tempo de chorar. E no decorrer do filme vemos Eunice no limite, choramos por ela, sofremos por ela, desmontamos. Mas ela segue inteira. A potência de Eunice Paiva invade a sala de cinema por meio da interpretação de Fernanda Torres. A atuação sóbria que traz vida a essa mulher nos faz entender a fala de Baby, amigo da família, interpretado por Dan Stulbach, em dado momento do filme: não tinha como a gente não fazer nada. Chorar não iria adiantar.
É impossível falar de Eunice sem citar os oito minutos finais. Fernanda Montenegro, sem dizer uma palavra, toca a nossa alma quando seu olhar, até então perdido, se encontra com a imagem de Rubens na televisão. Ver Fernanda Montenegro atuar sempre será uma experiência divina.
Ainda Estou Aqui foi o filme nacional de maior bilheteria desde a pandemia. Mais de 2,5 milhões de pessoas já foram aos cinemas conferir o novo longa de Walter Salles. Além disso, o filme tem movimentado as redes sociais e trouxe à tona discussões sobre o Oscar. Os brasileiros invadiram o Instagram da Academia e quebraram um recorde de curtidas, fazendo a foto de Fernanda Torres ser a mais curtida do perfil da premiação.
Em entrevista ao jornalista Rodrigo Ortega, do UOL, Fernanda Torres fala sobre o entusiasmo dos brasileiros na corrida pelo Oscar de forma magistral: A gente é isolado pela nossa língua ao mesmo tempo a gente consome a nossa própria cultura. A gente tem total interesse por nós mesmos. […] eu conheço a cultura francesa, eu conheço a cultura americana, eu conheço a cultura russa, a cultura alemã, a cultura italiana. Mas eles não conhecem a cultura brasileira, e as vezes eu tenho pena de quem nunca leu Machado de Assis […] Então, ao mesmo tempo que o Brasil tem esse complexo de vira-lata por causa dessa não comunicação com o mundo, o brasileiro tem pena do mundo não saber o que a gente sabe. […] . Temos pena dos gringos mesmo, Fernanda, gostaríamos que eles conseguissem sentir o poder de Ainda Estou Aqui da mesma forma que nós sentimos. Como disse a jornalista Isabela Boscov, em seu canal no youtube: esse é um filme que existe, antes de tudo, pra nós.
Sobre a ditadura de 64, estudamos, ouvimos músicas que foram censuradas, buscamos entender tudo o que aconteceu nessa época, mas o filme faz algo poderoso, que é dar um rosto a esse período. Não apenas o rosto de Rubens Paiva, mas a falta dele. O impacto que um desaparecimento, que sabemos que foi um assassinato, teve na vida de Eunice, Vera, Eliana, Nalu, Marcelo e Babiu. A falta de um pai, um esposo. Nós sentimos falta de Rubens, torcemos para ele voltar logo, mesmo sabendo que ele não volta mais. E quantas outras pessoas fazem falta até hoje? A Comissão Nacional da Verdade levantou que 210 pessoas ainda estão desaparecidas. Filhos, pais, namorados, amigos. O que é esperado que quem ainda está aqui faça com a saudade de uma pessoa que não voltou?
A ditadura militar esvaziou as salas, parou a dança, fechou as cortinas, transformou filhos em órfãos, mães e pais em viúvos. Mas Eunice Paiva sorriu. Estudou, se formou, lutou por quem não podia mais lutar. Não permitiu que os filhos ficassem infelizes, sérios ou envergonhados. Não permitiu que militares a pautassem. Ela se pautou. Fez o que aqueles que estavam no poder nunca poderiam fazer: gerou vida a partir da falta. Sorriu ao segurar o atestado de óbito de quem tanto amava, não permitiu que o vazio do desaparecimento fosse o destino de Rubens Paiva. É como se Eunice falasse: nós sabemos o que vocês fizeram. E não aceitamos.
Ainda estou aqui é memória. É aquele lembrete para que a gente nunca se esqueça de horrores que jamais devem se repetir. Em uma época em que Bolsonaro, filho da ditadura, tenta emplacar novamente um golpe militar, a tela do cinema grita: Eunice Paiva resistiu. Rubens Paiva resistiu. E nós, que ainda estamos aqui, vamos resistir. É preciso dar um jeito, meus amigos. E nós daremos.
Manuela Domingues, estudante de Jornalismo da UEL, professora de redação, participa do Laboratório de Estudos de Feminicídio e do Grupo Gabo de Pesquisa.