O que as tragédias ambientais querem nos dizer?

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 6 dias atrás


Em 2024, mesmo ano em que a Espanha está afogada na Europa, o Rio Grande do Sul sofreu a maior enchente de sua história e o Brasil viveu debaixo de fumaça durante as queimadas no Mato Grosso. Em setembro, inundações na Itália deixaram mais de mil pessoas desabrigadas. A Amazônia teve 12.696 focos de queimadas, entre janeiro e junho. Para os cientistas, isso não é uma surpresa, porém para os cidadãos comuns as mudanças climáticas parecem repentinas. Nessa entrevista o ambientalista Miguel Etinguer ajuda a entender o que está acontecendo no planeta.

Por Manuela Domingues

J&F: Até que ponto essas mudanças climáticas são naturais e quando elas passam a ser consequência de atitudes humanas?

Etinguer: Existem duas correntes doutrinárias sobre a questão das mudanças climáticas. Uma majoritária, que entende que essas alterações do clima fazem parte do processo normal da terra, das eras geológicas, só que a atividade humana no último século tem contribuído para acelerar e intensificar essas alterações climáticas. Então, elas estão sendo mais extremas e cada vez mais rápidas, causando uma série de eventos extremos com consequências na natureza e nos seres humanos. Uma outra corrente minoritária entende que não estamos numa chamada “emergência climática”, que essas alterações do clima não estão relacionadas com atividade humana. Seriam alterações normais da natureza. Alguns chamam essa corrente minoritária de “negacionistas”, mas eu prefiro não chamar assim, porque tem pesquisadores ali e temos que respeitar as opiniões diferentes. Por tudo que eu li, me filio à corrente majoritária.

J&F: É possível identificar culpados pelo caos climático no Brasil?

Etinguer: A busca da culpa é tradição da religião, né? Do catolicismo. Você sempre tem que buscar um culpado para depois se arrepender e pedir perdão. Isso faz parte da nossa sociedade, não só a brasileira. Podemos apontar não só um culpado para todo o problema. Existe uma série de condutas e omissões, tanto do poder público quanto da sociedade civil, que têm contribuído para essa degradação ambiental e, consequentemente, para a intensificação desses eventos climáticos extremos. Os estudos de alterações climáticas no Brasil, por exemplo, indicam como principal causa o aquecimento global. O que é o aquecimento global? É o aumento da temperatura da terra em função de algumas ações. Essas ações são identificadas no Brasil. Aproximadamente 70% das emissões do CO2 (dióxido de carbono), o maior contribuinte para o aquecimento global, são emitidos por agricultura, queimadas e desflorestamento, ou seja, supressão de vegetação. Você tem agricultura e a alteração do uso da terra, seja por queimada, seja por supressão da vegetação. 75% levam à emissão de CO2, maior causa do efeito estufa. Dá para identificar quem são esses autores: agricultura e quem faz a alteração do uso da terra. Mas existem outros culpados também como a falta de fiscalização e o comportamento do cidadão comum. Tem uma série de fatores que causam alterações climáticas, já identificados cientificamente. O IPCC, que é o painel intergovernamental sobre mudança climática vinculado a ONU, faz um estudo muito interessante sobre as causas desses eventos extremos. E quando falamos em meio ambiente, causas e consequências temos que tomar muito cuidado, porque não existe uma única causa e uma única consequência, é um conjunto de ações que levam a um conjunto de consequências.

J&F: O agro realmente tem uma participação ativa na mudança climática no país?

Etinguer: O agronegócio a gente conceitua como grandes latifúndios, produção em larga escala produzindo comodities e produzindo matéria prima principalmente para exportação: soja, trigo, cana, laranja, algodão, arroz. Esse tipo de atividade exige atualmente grandes extensões de terra que foram conseguidas por meio de supressão de vegetação nativa, seja de forma legal, seja de forma ilegal, com o uso intensivo de agrotóxicos, soros agrícolas e venenos. Isso é um fato. A supressão de vegetação, uso de produtos químicos e perda de biodiversidade em função das monoculturas tem gerado e contribuído para as alterações climáticas. Por outro lado, a pecuária também é uma atividade que tem gerado e tem sido identificada como geradora dos gases de efeito estufa, dentre eles o metano, por conta dos gases que são expelidos pelo gado. Soma-se isso ao desmatamento ilegal e grilagem de terra na Amazônia. Já é um cenário de crime.

J&F: Existe uma falha por parte dos governantes brasileiros em lidar com o meio ambiente?

Etinguer: Sim. Na questão ambiental, há uma enorme falha dos governantes, seja no espectro político de direita, esquerda ou centro. Um recente estudo que mostra candidatos a prefeito frente a uma política concreta de mitigação e adaptação das mudanças climáticas, causa decepção. Menos de 1% mencionaram no projeto alguma coisa. Esse é um exemplo de que os governos, o poder público em geral, em relação as mudanças climáticas, estão bem atrasados. Em relação a outras políticas ambientais, apesar da legislação nacional, estadual, e às vezes até municipal, ter alguma coisa relevante, elas não são efetivamente aplicadas. A experiência de participar do Conselho Municipal do Meio Ambiente de Londrina deixou claro que o pessoal não quer respeitar a legislação. E os governos, para não se indispor com seguimentos da sociedade, fingem que não estão vendo. Um exemplo foi a supressão de vegetação da zona de amortecimento da Mata dos Godoy: 10 anos atrás o pessoal da ONG MAE denunciou na Secretaria Municipal do Meio Ambiente. O antigo IAP foi lá e multou. Ficou por isso mesmo. O cara continuou desmatando e não pagou a multa.

J&F: Existe uma parcela de responsabilidade da indústria de consumo para com a situação que o Brasil se encontra hoje?

Etinguer: Nesse mundo em que vivemos, no sistema capitalista, de consumo desenfreado, com produção cada vez maior de produtos que ficam obsoletos e precisam ser trocados, tem uma demanda muito grande por recursos naturais. Para produzir um celular ou um notebook tem um monte de parte do mundo que foi concentrada em algum lugar, montada e agora está aqui. É um duplo impacto, desde a produção com a utilização massiva de recursos naturais, com a exposição final dos produtos, que são os resíduos sólidos que não são aproveitados. Isso também gera um passivo ambiental muito grande em que tudo vai desequilibrando o ecossistema geral da terra. As indústrias estão aí, é um sistema que é aceito dentro da legalidade e que tem contribuído para a poluição e para a degradação ambiental. O fato é: a gente precisa dessas indústrias para desenvolver o país enquanto sociedade individual e coletiva? Essa é uma pergunta que a gente tem que se fazer toda hora. Quais os custos? Quais as consequências dessas atividades? Estamos dispostos a arcar com esses custos? Essa discussão não tem sido feita no Brasil. Existe uma discussão muito rasa de que precisamos desenvolver, e para desenvolver vale tudo. Recentemente algumas indústrias no Brasil têm adotado práticas de sustentabilidade, que reconhecem o papel dessas indústrias nesse processo de degradação ambiental e adotam práticas para a diminuição dessas causas e desses efeitos. Mas é um grupo muito pequeno do setor industrial brasileiro que está preocupado com essa questão. Num sistema capitalista uma indústria não faz isso porque é boazinha, a indústria quer lucro. Ela faz isso ou por pressão nacional da sociedade, aí pode ter leis ou não, ou por pressão internacional, e aí é mercado. Legislação internacional ambiental praticamente não é aplicada, para o aumento do seu mercado consumidor. A indústria vai se adaptar por algum desses motivos. E no Brasil falta aprimorar algumas legislações. O que falta mesmo é um sistema correto de fiscalização anterior ao dano, seja por normas de comando e controle proibindo determinadas atividades e reprimindo, seja por normas de incentivo. Aqueles que têm uma conduta mais adequada recebem incentivo do governo: redução de tributos, um selo verde, alguma coisa que interesse para a indústria. No caso o lucro da empresa é mais mercado ou reconhecimento perante a sociedade.

J&F: O meio ambiente é discutido na sociedade, nas escolas, universidades ou na mídia? E existe algo que nós, como cidadãos comuns, podemos fazer para auxiliar o planeta?

Etinguer: Tem aumentado a discussão na grande mídia, porque existe uma pressão internacional. A sociedade em geral não tem discutido esse assunto, pelo menos não tenho percebido no âmbito local, estadual e nacional. Não é que não tem, tem muita gente envolvida. Se você pegar o CONAMA, que é o Conselho Nacional do Meio Ambiente, tem uma galera enorme discutindo, debatendo e tal, mas não se vê isso no dia a dia. É muito difícil encontrar uma discussão ambiental mais sistematizada, com alguns objetivos, etapas, mobilização, participação da sociedade, chamar mais pessoas para uma causa e essa galera ir crescendo. Isso a gente não vê. As universidades são espaço por excelência para discutir a questão acadêmica científica, mas não é suficiente. É preciso juntar com o conhecimento popular, com o conhecimento tradicional. Juntar essas áreas: academia, ciência e conhecimento popular, é o maior ganho que o meio ambiente pode ter. A universidade tem discutido bastante, as universidades públicas e uma ou outra particular estão atentas a essa questão. Na nossa UEL a gente tem tentado avançar nessa pauta da questão ambiental. Na época em que eu fui procurador jurídico da UEL, junto do reitor Sérgio Carvalho, nós iniciamos um processo de discussão de política de gestão ambiental, mas isso há seis anos. Isso foi andando bem devagar principalmente por causa da pandemia. Agora, seis anos depois, que vai surgir um grupo de trabalho para elaborar a política de gestão ambiental. A gente conseguiu identificar na universidade quase 100 pesquisadores de ponta que estudam alguma área relacionada com o meio ambiente, cada um fazendo a sua pesquisa isolada. O que a gente quer fazer é juntar essa galera e montar uma política de gestão ambiental dentro da Universidade, que vai pegar os melhores profissionais, coisa que se for no mercado é caríssimo. E nós como cidadãos podemos, para começar, se envolver, buscar orientação, tirar uma horinha da semana para ler alguma coisa, ou participar de uma reunião da associação de bairros, discutir isso no centro acadêmico, em algum lugar, para entender o que está acontecendo e se mobilizar. Penso que se pode participar localmente das discussões para entender o problema e, assim, exigir uma mudança de postura daqui para a frente. Dentro da universidade o que se pode fazer também é participar das iniciativas. Existe o projeto Desplastifica UEL, criado por estudantes, um pessoal muito bom, que é uma galera que está bem atuante e mexendo com a universidade. Isso é um barato!

J&F: Existe alguma forma de reverter a situação ambiental que vivemos ou, pelo menos, estagná-la no momento em que se encontra?

Etinguer: Pelo que eu leio eu vejo, ainda é possível reverter essa situação. Mas todas as metas e os objetivos que foram traçados nos últimos anos não têm sido cumprido, ou seja, estamos indo na contramão do que a ciência está falando. A gente avança em um ou outro pontinho, mas no geral não estamos avançando. As pesquisas apontam para a chegada do chamado “ponto de não retorno”, aquele no qual vai ficar irreversível. Alguns ecossistemas ficarão irreversíveis, como um deserto na região amazônica, perda total de biodiversidade na caatinga, seca no pantanal, coisas que são indicadas como irreversíveis. A gente não prevê o futuro, mas esses cientistas se baseiam em estudos de conhecimento da nossa época.


Manuela Domingues, estudante de Jornalismo da UEL, professora de redação, participa do Laboratório de Estudos de Feminicídio e do Grupo Gabo de Pesquisa.

Miguel Etinguer, Professor da UEL nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito, ministra aulas sobre a temática ambiental, Mestre em Direito, pela Universidade Estácio de Sá, Doutor em Direito da Cidade pela UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro e atualmente faz pós-doc na África do Sul sobre “Regulação do solo urbano para adaptação às mudanças do clima”.

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