Em agosto nos vemos

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 1 ano atrás


Difícil julgar Rodrigo e Gonzalo sobre a publicação póstuma do livro Em agosto nos vemos. García Márquez havia decretado que os manuscritos deveriam ir para o lixo. Os filhos – para agradar os leitores do pai ou por alguma outra razão – desobedeceram o grande autor.

Thales Souza Reis

Na data em que Gabriel García Márquez completaria 97 anos, 6 de março, o mundo recebeu como presente uma obra inédita, fruto de um original semipronto dos últimos respiros da criatividade do autor que conquistou o mundo por sua capacidade de construir mundos. Em agosto nos vemos é um lançamento envolto em polêmicas: realizado pelos filhos de Gabo, que havia desistido de publicá-lo e pediu que fosse descartado, pois não o considerava bom.

Rodrigo e Gonzalo, logo no prefácio, se desculpam pela traição ao pai, justificando a escolha de publicar o livro para atender ao anseio dos leitores, mesmo contrariando a vontade de Gabo. Os próprios filhos deixam claro que é uma obra que não teve a lapidação das demais produzidas pelo autor, que revisava seus escritos incansavelmente. Porém, apesar das considerações, o valor literário de Em agosto nos vemos é inegável.

Ana Magdalena Bach é mais uma das grandes mulheres que aparecem na literatura de García Márquez. Forte como Fernanda del Carpio, a protagonista é dona do próprio destino e desbrava os prazeres da vida, ao acaso, ao deixar de lado a rotina que seguia ano após ano, desde a morte da mãe: a cada 16 de agosto, visitava sozinha seu túmulo em uma ilha do Caribe, dormindo no mesmo hotel e pondo gladíolos em seu túmulo.

Em uma dessas visitas, fugindo da mesmice, saboreia uma taça de gin, conhece um homem, o leva para a cama e, obstinada e severa como Úrsula Iguarán, toma as rédeas da própria vida. A partir daí aproveita das visitas para viver novas noites de amor, ponto no qual a história se desenvolve, com poucas surpresas, capazes de prender o leitor, que espera um grande momento, que enfim, não vem.

O enredo simples tem características que entregam sua inconclusão: a obra nasceu inicialmente como cinco contos, não como uma novela. É neste aspecto que está sua maior falha: o livro termina sem muito brilho, de forma apressada, contrário ao que se esperaria de um García Márquez. A forma arrebatadora com que Ana Magdalena surge vai dando lugar a um desenvolvimento discreto, que se paga nos capítulos finais.

Apesar das válidas críticas, é inegavelmente uma obra garciamarqueana: os temas e a forma são reconhecíveis até ao leitor desatento. Os interesses do autor, como a música e a literatura, são postos em Ana Magdalena e seu marido, Doménico Amarís. O subtexto da obra conta com temáticas caras à Gabo: o subdesenvolvimento, a modernização imposta pelo capital estrangeiro, as oligarquias políticas da América Latina e, é claro, os detalhes da vida cotidiana.

Ao fim e ao cabo, a obra é vítima de seu autor: será criticada por não estar à altura de Cem anos de solidão ou O amor nos tempos do cólera e, muitas vezes, se repetirá a esmo os mesmo argumentos, sem conhecimentos mais profundos, pois o que vale é criticar. Ainda assim, é um texto que seria celebrado em qualquer premiação de literatura. Enfim, um García Márquez incompleto vale mais que muitas obras prontas.


Thales Souza Reis, formado em Relações Públicas, pela UEL, onde investiga a obra de Gabriel García Márquez, no Mestrado em Comunicação. Membro do Grupo Gabo de Pesquisa desde 2023.

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