García Márquez em processo de criação

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 1 ano atrás


Breve estudo sobre detalhes da escrita literária de Gabo. Desde o primeiro esboço de La casa, passando pela invenção de Macondo, o surgimento de personagens e situações que se desenvolveram em Cem anos de solidão.

Texto Hiury Pereira @hiurypereira
Edição Ciça Guirado @cicaguirado

O EMBRIÃO DE CEM ANOS DE SOLIDÃO

O romance que estava escrevendo [La casa] me parecia, seis meses depois de ter começado, uma farsa insossa. Falava mais do romance do que escrevia, e na verdade a pouca coerência que consegui estava nos fragmentos que publiquei na coluna “A Girafa” e depois, quando me faltava assunto, em “Crónica”.

Viver para contar

Aracataca, a casa dos avós, as guerras do avô e o contraste entre progresso e exploração, presenciado com a chegada das ferroviais e da multinacional bananeira. Gabo utilizou sua cidade natal como plano de fundo da história. Ele tinha pouco mais de vinte anos.

O projeto rondou o pensamento do escritor-jornalista que já sabia sobre o que queria escrever, só ainda não tinha os caminhos que levariam até Macondo. O enredo de La casa tratava do lar de uma família patriarcal, os Buendía. Além da estruturação da estirpe, o plano de romance apresentava o Coronel Aureliano Buendía como espinha dorsal da história. O idealizador de Macondo abandonou o embrião de sua futura obra mais conhecida. Admitiu, anos mais tarde, que o caminho literário que pretendia seguir naquela época era demasiado grande para a sua inexperiência literária. A casa (La casa) haveria de ser arquitetada, remodelada, e se tornaria, muitos anos depois, no clássico Cem anos de solidão.

MACONDO: BERÇO DO FANTÁSTICO

Antes mesmo de ser descrita em Cem anos de solidão como “uma aldeia de vinte casas de pau a pique e telhados de sapé que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos”, Macondo nasce no primeiro romance de García Márquez: A revoada – o enterro do diabo,  publicado em 1955.

O nome “macondo” veio da placa de uma fazenda bananeira, a dez minutos de Aracataca, cidade natal de Gabo. Em Viver para contar, ele detalha que a palavra despertava sua atenção desde os tempos das viagens de trem com o seu avô, quando ainda era menino.

Quando viajou com a mãe, na juventude, para vender a casa dos avós, viu de novo aquela placa. Gostou da ressonância poética. Criou um vilarejo para esse nome. Agora Macondo representa o berço do fantástico, do impossível presente no cotidiano, da exploração disfarçada de progresso, da riqueza transposta de uma nação e das trinta e duas guerras perdidas pelo Coronel Aureliano Buendía.

ISABEL VENDO CHOVER EM MACONDO

“Estávamos paralisados, narcotizados pela chuva, entregues ao desmoronamento da natureza, em uma atitude pacífica e resignada.”

Olhos de cão azul

Papéis rasgados são inevitáveis quando a obra não entrosa com o entusiasmo do escritor. Isabel vendo chover em Macondo, um dos contos mais conhecidos e elogiados de Gabriel García Márquez, quase teve o mesmo destino de outros inúmeros esboços desprezados. Em 1955, o poeta colombiano Jorge Gaitán Durán revisou o cesto de descarte de Gabo e chamou a atenção sobre o valor do conto.

O Monólogo de Isabel vendo chover em Macondo seria um capítulo de A revoadaO enterro do diabo – já publicado na época, mas se tornou o último conto de Olhos de cão azul (onze contos escritos entre 1947 e 1955). Um drama apreensivo da personagem Isabel e suas reações ao cair da incontrolável chuva. Em Aracataca, no ano de 1932, inundações trouxeram o mesmo clima da história. A maior catástrofe da cidade agravou-se pelos desvios dos rios Aracataca, San Joaquín e Ají, realizados pela companhia United Fruit Company. O conto registra, de forma literária, o poder e o alcance que a natureza impõe quando consternada pelo descaso humano. A mesma chuva passagem foi ampliada, em 1967,  para Cem anos de solidão: “Choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias”.

OS FUNERAIS DE MAMÃE GRANDE

“Esta é, incrédulos do mundo inteiro, a verdadeira história da Mamãe Grande, soberana absoluta do reino de Macondo, que viveu em função de domínio durante 92 anos e morreu com cheiro de santidade numa terça-feira de setembro passado e a cujos funerais veio o Sumo Pontífice”.

Os funerais de mamãe grande

Qual acontecimento seria capaz de reunir o Sumo Pontífice, o presidente e todo o povoado de Macondo? Apenas o velório de Maria del Rosário Castañeda y Montero – ou Mamãe Grande, como era chamada desde os seus 22 anos.

Gerações mais recentes imaginavam o esplendor das feiras de aniversário que a “soberana absoluta” comemorava o passar da idade até os 70. Porém, os olhos se agraciariam com algo muito maior que cumpleaños: a morte.

O arroto fúnebre exalou aroma de libertação. Mamãe Grande recebia o pagamento pelo direito de habitar em Macondo. Os herdeiros precisariam calcular dízimos e prosseguir com a exploração da terra, três potes de moedas de ouro e os bens morais – patrimônio invisível, que não conseguiria ser citado, de forma integral, em três parágrafos. O autor pede que a história seja recontada. Mais do que a notícia da morte da soberana, ninguém pode seguir sem saber o motivo do suspiro de alívio pela esperança de novos tempos.

GUERRA DOS MIL DIAS

“O interesse pela política nacional era bastante escasso no colégio interno. Na casa de meus avós ouvi dizer que era demasiado que a única diferença entre os dois partidos depois da Guerra dos Mil Dias era que os liberais iam à missa das cinco para que não fossem vistos e que os conservadores à missa das oito para que acreditassem que eram crentes”.

Viver para contar

Episódio que marca grande parte do livro, a Guerra dos Mil Dias (1899-1902) se faz presente em Cem anos de solidão, através das batalhas do Coronel Aureliano Buendía. Gabriel García Márquez teve contato com a história do conflito colombiano na infância, através das histórias de seu avô Nicolás. O avô de Gabito participou como comandante, desde o início da guerra, quando ocupou a cidade de Riohacha ao lado do exército liberal.

A guerra civil entre liberais e conservadores terminou vinte e seis anos antes do nascimento do autor. Como consequência do conflito, mais de cem mil baixas e a desanexação do Panamá como território colombiano. Filho de conservador e neto de um coronel liberal, Gabito teve o avô como primeira influência política, ao ouvir contos sobre as batalhas.

`A ESPERA DE MEIOS PARA SOBREVIVER

“Lembrou-se de Macondo. O Coronel esperou dez anos para que cumprissem as promessas de Neerlândia. Na Modorra da sesta viu chegar o trem amarelo e empoeirado com os homens, as mulheres e os animais asfixiando-se de calor, amontoados até o teto. Era a febre da banana. Transformaram o lugar em vinte e quatro horas”.

Ninguém escreve ao coronel

O nascimento de Ninguém escreve ao coronel se deu no momento em que Gabo enfrentava a mesma dificuldade do personagem principal da novela: a falta de dinheiro. A partir da imagem de um velho que espera sentado frente ao porto, surgiu a história do coronel que aguarda pela aposentadoria de guerra, que chegaria pelo correio, tal qual a realidade de Nicolas Mejía Márquez, seu avô.

No romance, o casal procura meios para sobreviver enquanto não recebe a merecida pensão. Ao lado de uma mulher asmática, o velho sente falta do filho assassinado por distribuir panfletos subversivos. A lembrança maior do filho está em seu antigo galo de briga. A mulher vê a venda do animal como a única saída para a fome, enquanto o Coronel prefere “comer merda” a vender o amuleto.

Desde o cessar fogo estabelecido pelo Tratado de Neerlândia, da Guerra dos Mil Dias, o Coronel não pôde aproveitar de sossego. Gabo presenciou a mesma história com o seu avô. A conclusão da história é dada por outro coronel, o Aureliano Buendía, em Cem anos de solidão: “Vão morrer de velho esperando pelo correio”.

O MASSACRE DAS BANANEIRAS

“– Deviam ser uns três mil – murmurou.

_ O quê?

– Os mortos – esclareceu. – Acho que todos os que estavam na estação”

Cem anos de solidão

O episódio conhecido como Massacre das Bananeiras, ocorreu em 1928, em Ciénaga, na Colômbia. O movimento denunciava abusos da companhia estadunidense United Fruit Company. Trabalhadores organizaram uma greve reivindicando direitos como: seguro coletivo, indenização em caso de acidentes no trabalho, descanso remunerado aos domingos, suspensão dos contratos individuais para a vigência dos coletivos, além de outros direitos relacionados ao mínimo, considerado na época, necessário para exercer o trabalho nas plantações. A greve durou vinte e oito dias (Caro, 2010).

No dia 6 de dezembro de 1928, durante a madrugada, na estação de trem de Ciénaga, os grevistas foram surpreendidos pelo general Cortés Vargas e seus trezentos soldados. Com a ameaça de abrir fogo, o militar ordenou que os trabalhadores se dispersassem. Como não acataram a ordem, o massacre teve início.

Até o amanhecer, as autoridades trataram de desaparecer com a maioria dos corpos. Em Cem anos de solidão, o personagem José Acárdio Segundo esteve ao lado dos grevistas e integrava o movimento. García Márquez constrói o apoio do personagem às reivindicações dos trabalhadores como “a primeira vez na vida que ergueu a voz”. Até hoje não se sabe ao certo o número de mortos nesse massacre, por isso utiliza-se o registro fictício de Gabriel García Márquez: “Deviam ser uns três mil”.

Referências

GARCÍA MÁRQUEZ, G. Cem anos de solidão. Tradução Eric Nepomuceno – 113a edição – Rio de Janeiro: Record, 2020.

______________________ Viver para contar. Tradução de Eric Nepomuceno. – 6a ed. – Rio de Janeiro: Record, 2014.

_______________________Ninguém escreve ao coronel. Tradução de Danúbio Rodrigues – 31a ed – Rio de Janeiro: Record, 2019.

_______________________Os funerais da Mamãe Grande.Tradução de Édson Braga – 15. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2014.

_______________________Olhos de cão azul. Tradução de Remy Gorga Filho.2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1974.

CARO, J. E. La masacre obrera de 1928 en la zona bananera del Magdalena- Colombia. Una historia inconclusa. 2010. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/127/12719967004.pdf . Acesso em: 02 out. 2019.


Hiury Pereira é jornalista formado pela UEL. Participou do Grupo Gabo de Pesquisa de 2018 a 2021. Está no time de criadores da Revista Jornalismo & Ficção na América Latina.

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