Diário de Macondo
Revista Jornalismo & Ficção
atualizado 1 ano atrás

Anotações da viagem à Aracataca, com propósitos de identificar locais e caçar personagens do ‘pueblito’ de Cem anos de solidão. No formato folhetinsta, circulou pelo Instagram durante a pandemia da COVID-19, em abril de 2020.
Ciça Guirado
I
O sol quase se apaga no povoado. 3 de novembro de 2016. Só deu tempo de passar em frente da Casa Museo García Márquez e dar uma volta na praça. A igreja, onde Gabo foi batizado, anuncia a missa das seis da tarde. De repente, misturado ao pó cinzento, o céu fica escuro. Nas ruelas abafadas de Aracataca não haverá luz essa noite. Apenas salta aos olhos os faróis de alguns motocarros transitando na Rua dos Turcos. Vim num desses triciclos, que apanhei em Fundación, por 20 reais. Um bate e volta ligeiro para saciar o desejo urgente de ver Macondo. A famosa aldeia de Cem anos de solidão.
II
Acordo cedo no hotel do povoado vizinho. Quero beber do cenário de Cem anos de solidão com a luz do dia. A condução coletiva, por 2 reais, rasga o verde de palmas africanas entre os dois “pueblitos”. De Fundación a Aracataca são vinte minutos. Desço uma quadra antes do local onde Gabo nasceu: a casa dos avós. Casa real de Tranquilina Iguarán e do Coronel Nicolás Ricardo Márquez Mejía. Entrada grátis. A guia começa a falar, mas os sentidos atuam todos a uma só vez. Os personagens, vivificados pela releitura recente, transitam pelos cômodos. O último e triste Aureliano está fechado em seu quarto para desvendar os códigos em sânscrito deixados por Melquíades. No escritório, o coronel Aureliano Buendía faz e refaz seus peixinhos de ouro.
III
Os tempos se misturam. Enquanto os animaizinhos de caramelo de Úrsula estão a secar na cozinha, o velho Buendía chora debaixo do castanheiro. Ali se arrasta pelo chão o último descendente, levado pelas formigas. Intacta, a varanda das begônias espera o entardecer nas grandes cadeiras de balanço. Fernanda Del Caprio está saindo de cara feia, arrasta Meme até a estação de trem. A Casa Museo García Márquez está repleta de borboletas amarelas. Remédios, a bela, já havia subido aos céus, envolta em lençóis. No quartinho dos fundos, os velhos guajiros dormem em suas redes. Tudo está em seu lugar. A mesa posta. Camas arrumadas. Como se a casa esperasse a volta de todos os personagens. Para acalmar o fluxo das imagens, procuro um banco no quintal, mas o fantasma de Prudencio me assusta. Ainda vaga pelo pátio.
IV
Ouço a guia repetindo seu discurso para um grupo de turistas chineses. Milena Cifuentes, 31 anos, ainda não acabou de ler Cem anos de solidão, apesar de trabalhar há um ano na casa cenário dessa história. Ela garante que Viver para contar, o livro de memórias de Gabo, tem todas as informações que necessita. Das 1.500 pessoas que visitam a Casa Museo García Márquez por mês, a maioria pergunta até que idade Gabo viveu no local e se ele visitou Aracataca depois do prêmio Nobel de 1982. Na ponta da língua, Milena responde: “Ele viveu aqui até os 8anos. Voltou em 1950 com a mãe para vender a casa. Em 2007 veio para a inauguração. Desceu do trem amarelo na Estação do povoado como nos velhos tempos. Mas não entrou na casa”. Tinha medo dos fantasmas?
V
O vizinho da Casa Museo García Márquez, Juan Carlos Noches Ramos, 56 anos, filho de um amigo de infância de Gabo, mostra nas paredes da sala as fotos com o “cataquero” famoso. Ele conta que García Márquez “não entrou na inauguração, em 2007, porque teve medo de sofrer uma emoção muito forte. Pouca gente sabe, mas ele vinha de vez em quando a Cataca (Aracataca para os íntimos). García Márquez gostava de comer sancocho trifásico [sopa colombiana, a base de mandioca e milho, com carne de frango, de boi e de porco]. Vinha às escondidas, porque queria estar com os amigos”. Juan Carlos aponta para a janela, na casa ao lado, de onde Eligio García, o telegrafista cortejava Luiza Santiaga, a filha do coronel Nicolás, mãe de Gabito. “Ela atravessava a rua para segurar na mão dele, por entre as frestas largas, sem dar nas vistas dos pais, que não consentiam o namoro”, sussurra o vizinho, como se o Coronel Márquez pudesse ouvir.
VI
O imóvel onde nasceu Gabo foi carcomido pelo abandono. Reconstruída em detalhes verídicos, com o aval do Nobel, a Casa Museo García Márquez é mantida pelo Ministério da Cultura e administrada pela Universidad del Magadalena, de Santa Marta. Na esquina há um restaurante com dizeres de Gabo na fachada. Almoço mojarra frita com arroz de coco e patacones. [Mojarra é um peixe de rio, vermelho e saboroso. Patacones são pedaços de banana verde, amassados e fritos.] Difícil não sentir sono depois dessa comilança. Restaurante sem cerveja. A senhorinha explica: “Somos cristianos”. Calor de 40 graus. Na mesa ao lado, um jovem casal indígena almoça com a filha. Indígenas Kogis de Sierra Nevada. Belezas esculturais de corpos morenos e gestos delicados. Cabelos lisos e negros, em contraste com o branco das roupas. Não se deixam fotografar.
VII
Caminho até a praça. Sol de quase 40 graus. As sombras já tinham donos. Não há para onde fugir no abafamento das tardes. Possíveis apenas depois das 16 horas. Vejo, meio esfumaçado ao longe, alguém entrar no Correio. Corro pra lá. Bato na porta. A funcionária avisa: “Só abre às 14 horas”. Ainda são 13hs. Caridosa, ela permite que eu aguarde no frescor do ar condicionado. Nessa espera descubro que posso bisbilhotar, pelo pátio contíguo, a Casa do Telegrafista. Espio pela janela uma exposição de selos de Gabo, uma sala com livros de Gabo. 14hs. Entro e vejo um jarro com flores frescas e amarelas, em homenagem ao Nobel. Pergunto para a coordenadora do espaço Darlis Cáceres:
– Onde está o telegrafista, pai de Gabriel García Márquez?
VIII
“As pessoas identificam a Casa do Telegrafista como uma referência ao pai de Gabo. Acredito que não preservaram nada do telegrafista Gabriel Eligio, porque desde sempre houve muita relutância em aceitá-lo em Aracataca. O coronel Nicolás e a esposa Tranquilina (avós de Gabito) não faziam gosto no casamento. O telegrafista era muito mulherengo. Seduzia todas as moças do povoado. Quando pediu a mão de Luiza, mãe de Gabito, deu apenas 24 horas para ela responder. Esse sentimento de repúdio ao pai de García Márquez ainda sobrevive por aqui”, comenta Darlis, responsável há 7 anos pelo espaço. De fato, não há imagens de Eligio García expostas aos turistas. Mas ele é o personagem principal do romance O amor nos tempos do cólera. História de amor baseada na vida real dos pais de García Márquez.
IX
De motocarro, volto mais cedo para Fundación. Às 18hs entrevista com o historiador e professor Venancio Aramís Bermúdez Gutiérrez. Há 40 anos ele estuda a região. Escreveu Migrantes y blacamantes em la zona bananera del magdalena. “O grande atraso da região deve-se aos herdeiros das ‘rochelas’. No início da colonização, povos originários, negros e brancos foram para os montes, em cabanas com 10 ou 15 pessoas. Viviam acasalados entre pessoas da mesma família. Assim foram gerados muitos ‘corronchos’, os caipiras da costa”, explica. Esse modo incestuoso de viver gerava pessoas com muitos tipos de deficiências. Daí o grande medo de nascerem bebês com rabo de porco. Ele garante: “Tudo que Gabo escreveu é verdadeiro. García Márquez não inventou nada. Ele só ampliou as histórias. Fantasiou um pouco e adaptou aos personagens. Cem anos de solidão trata dos incestos que marcaram a região”.
X
Dia seguinte. O guia turístico Rodolfo Manuel Rodriguez Cassares, 29 anos, recorda as histórias de Macondo. Caminhando pelas ruas calorentas ele fala da infância de Gabriel na Escola Montessori. Conta que sua avó, Maria Magdalena Bolaño Soares, foi babá de Gabito. Mostra o túmulo verídico do irreal Melquíades, construído pelo holandês Tim Buendia: “Tim viveu em Aracataca até 2015. Ele se sentia da família macondiana. Se rebatizou como Buendía. Montou uma pousada, que agora se chama Casa Morelli. Mas, depois que se casou voltou para a sua terra”, conta Rodolfo. Passeamos pela Rua dos Turcos. Observo de perto o edifício do Teatro e Cinema Olímpia, onde García Márquez, pelas mãos do avô, viu as primeiras imagens em movimento.
XI
Sábado. Visita a um “gabólogo” de Macondo. O professor Frank Domingues, 48 anos, dá entrevista embaixo de uma árvore, em frente de sua casa. Ele desenvolve o Projeto de Leitura García Márquez, na escola que leva o nome do Nobel. “O projeto, que começou em Aracataca, agora abrange outras cidades da região: Barranquilla, Santa Marta, Ciénaga, Fundación, Retem e Cartagena. O governo financia a compra de obras literárias e de computadores para as escolas. Isso impulsiona o aprendizado das crianças em muitas matérias”, diz Frank. Estudioso de Cem anos de solidão, ele comenta a relação dos personagens, os costumes da costa caribenha, a pobreza decorrente da exploração estrangeira. Sobre o estado de carências do município há mais de 100 anos, ele prefere citar Úrsula: “Aqui havemos de apodrecer sem receber a ajuda da ciência”.Ao se despedir, o professor profetiza: “Não se esqueça que o intertexto principal de Cem anos de solidão é a Bíblia”.
XII
Quase meio dia. Quase 40 graus. Pétreos ovos pré-históricos do rio Aracataca se espalham pelo povoado desde a fundação de Macondo. Não corre uma única brisa. Sensação de realismo mágico: os ovos explodem e criaturas jurássicas desfilam pelo povoado. Um oásis surge: enorme e luxuoso, destoando do discurso dos Buendía. É o maior bar de sinuca das redondezas, com mesas importadas, piso de porcelanato, paredes de vidro e ar condicionado. Aproveito a companhia do guia Rodolfo para entrar no recinto consagrado aos machos. Das grandes TVs de plasma ecoa um “vallenato” antigo de “Los Hermanos Zuletas”. Em pé está José Carlos Solano, jogando com Jony Celeron.
– Vocês leram Cem anos de solidão? pergunto aos jogadores.
– “Li na escola, não lembro direito. Gosto mesmo é de jogar bilhar”, responde com desdém José Carlos, 25 anos. O outro não tirou o olho do taco.
A velha casa de bilhar, ainda coberta com teto de zinco, é para os “cataqueros” mais pobres, que ainda são maioria em Aracataca.
XIII
Outro dia. Restaurante Pátio Mágico de Gabo e Leo Matís. Homenagem aos dois famosos da terrinha (Matís, foi fotógrafo de sucesso mundial e amigo de García Márquez). Este é o espaço mais agradável para desfrutar da comida típica. Refeições regadas à anedotas “cataqueras”, servidas pelos donos na varanda dos fundos. Uma média de 15 reais por pessoa, incluindo “água de panela” [mistura de água, limão, rapadura e gelo] refresco típico do Caribe colombiano. O preço é bom para turistas, mas impraticável para os macondianos que preferem uma refeição da Rua dos Turcos: 3 reais o prato executivo, à base de inhame, mandioca, patacones e um pedaço de carne.
XIV
Para fazer a digestão, passeio com o guia Rodolfo até o portal na entrada do povoado. Lá está o recente painel, onde Gabo agradece sua Macondo:“Me siento latino-americano de cualquier país, pero sin renunciar nunca a la nostalgia de mi tierra: Aracataca, a la cual regresé um día y descubrí que entre la realidade y la nostalgia estaba la matéria prima de mi obra”.
Seguimos até o Camellon 20 de Julio, restaurado em 2016, com 50 % da obra patrocinada pelos mexicanos. O projeto faz homenagem a fantástica cidade de Comala, do romance Pedro Paramo, de Juan Rulfo. “O México fez a primeira parte da reforma do Camellon, mas os colombianos não terminaram a construção como prevista. As autoridades alegaram que não era possível colocar uma fonte de água”, lastima Rodolfo. É verdade. Falta água e luz o tempo todo em Aracataca.
XV
Água. Beber é preciso. Caminhada rápida até o novo supermercado. O ar condicionado regela até os ossos. Recuperação da imagem: o Coronel Aureliano Buendía, ainda menino, sendo levado pelo avô para conhecer o gelo. Gelo em Macondo ainda é sinônimo de progresso. Os moradores, escarrapachados nas cadeiras em frente às suas casas, esperam o anoitecer e a brisa novembrina… Esperam também a ativação da “Rota do Realismo Mágico”, que ligará Macondo à elegante cidade Santa Marta, capital do Estado da Magdalena.
O trem agora leva apenas o carvão produzido pelas minas das redondezas. Ao lado da estação, uma homenagem à Remédios, a bela, que sobe aos céus envolta em lencóis nas páginas de Cem anos de solidão. Na verdade, neste exato local, uma moça de Aracataca, em remotos tempos, fugiu com um homem casado. A família soltou o boato que ela subiu aos céus, feito santa. Pode?
XVI
Passei essa tarde conversando com Robson Mulford, 62 anos, presidente da Fundação Realismo Mágico. A associação, formada por moradores de Aracataca pretende “passar um certo orgulho aos alunos por pertencerem à terra natal do Nobel. Ainda há muito ressentimento na população, sabe? Gabo nunca investiu em obras para os seus conterrâneos”, comenta.
Nas ruas de Macondo correm boatos que Gabo doou muito dinheiro para as guerrilhas de esquerda da Venezuela, que ajudou Cuba e nunca deu nada ao seu povoado. Em 1983, quando García Márquez passou por Aracataca explicou a Robson: “construir instituição de ensino é papel do Governo”. Ele tinha razão. “O Prêmio Nobel que Gabo deu a Aracataca é muito maior que qualquer colégio ou escultura em praça pública”, diz Robson Mulford, que se orgulha da foto com García Márquez em sua sala de visita.
XVII
Último dia em Macondo. Resolvo pernoitar na Casa Morelli, que conserva o diagrama das gerações de Cem anos de solidão nas paredes da sala. O mapa genealógico para compreender o fantástico romance da América Latina foi deixado por Tim Buendía. O holandês que montou a pousada. O mesmo que construiu a tumba de Melquíades. Nesta noite não havia nada especial no lugarejo. Macondo seguia tranquila com suas ruas quentes e pouco iluminadas. Não há água. Me atiro na cama e ligo o ar condicionado para relaxar. A água virá mais tarde. Enquanto penso no significado de realismo mágico, ouço a propaganda do Circo Trotamundos do Brasil.
XVIII
De repente, um bordão descostura o silêncio de Macondo: “O fantástico Circo Trotamundos do Brasil. Hoje com duas sessões. Às 20hs e às 21hs. 3 mil pesos para uma pessoa e 5 mil pesos para duas”. Circo do Brasil? Saio rápido para pegar a primeira sessão. A pouca luz impede de conjecturar sobre a brasilidade circense. Questiono a mulher que recebe o dinheiro, em frente à encardida abertura da lona, com acesso ao picadeiro: “Vocês são mesmo do Brasil?”, pergunto desconfiada. “No”, ela responde. E com uma voz triste, acrescenta: “Solo una trampa para llamar personas”.
Sete adultos e oito crianças nas arquibancadas. O mestre de cerimônias, manipula uma mesa antiga de som e luz e avisa ao respeitável público que o malabarista caiu do trapézio. Um magricela homem aranha surge pendurado na teia de cordas. Um domador usa uma cadela faminta para passar pelos arcos em chamas. Nem o humor ingênuo dos palhaços disfarça a miséria do circo. Um dos lados da arquibancada totalmente vazio. O palhaço ergue a voz: “Agora as palmas dessas almas que estão desse lado, porque os corpos não vieram”. E o outro completa: “É o realismo mágico da Colômbia. Palmas para o realismo mágico”.
XIX
O pobre circo faz seu último espetáculo e parte para Riohacha, capital da Guajira. De lá vieram os avós do escritor Nobel. Macondo desfrutava naquele “entonces” das riquezas da United Fruit Company. Em Aracataca havia cinema, teatro e comunicação rápida pela ferrovia. Mas a matança dos trabalhadores bananeiros, que faziam greve por melhores condições de trabalho daria outro rumo para este lugarejo do Caribe. O episódio real de 1928 – ficcionado em Cem anos de solidão foi ordenado pela empresa norte-americana, com a ajuda do exército colombiano. No livro de Gabo, três mil pessoas morreram no “massacre das bananeiras”. Ninguém sabe ao certo o número de mortos. O realismo mágico não deu conta de disfarçar essa realidade, que continua na memória dos moradores e na Casa Museo García Márquez, em Aracataca: a Macondo da América Latina, sentida e amada por mais de 50 milhões de leitores espalhados pelo planeta.
Ciça Guirado é jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), doutora em História da Comunicação (Universidade Nova de Lisboa) e Pós-doc em Jornalismo (UFSC). Professora do Departamento de Comunicação da UEL, coordena, desde 2012, o Projeto Gabo de Pesquisa. Diretora e editora da Revista Jornalismo & Ficção: América Latina e Caribe. E-mail: ceciliaguirado@hotmail.com