Rotina tradicional brasileira

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 1 ano atrás


Cada dia que passa o cotidiano da família brasileira está mais violento. A rotina pode ser interrompida, a qualquer momento, pelos desajustes sociais.

Izabella Abade

A semana começava na região leste de São Paulo. A família se preparava para mais um dia. O pai fazia o café da manhã, como era de costume. A esposa e a filha de 17 anos terminavam de se arrumar. Durante o café, a garota falava sobre a peça de teatro que assistira ontem com os amigos e como tinha se divertido.

O assunto “Enem” veio à tona e a tensão se formou. A jovem sonhava em cursar Direito – um dos cursos mais concorridos do país – e sabia que precisava de boas notas. Seus pais lhe acalmaram e aconselharam a não ter pressa, pois tudo daria certo. Momentos assim eram comuns entre eles: risadas, comida boa, companheirismo e amor.

A família continuava com as tarefas enquanto a mãe foi trabalhar. O pai e a filha arrumaram a mesa e combinaram de assistir ao jogo de volêi que passaria à noite na televisão. Mas, após o acordo, a adolescente sentiu uma pontada no peito, seus pêlos do braço se arrepiaram e uma sensação ruim tomou conta de seu corpo. “Um aviso?”, imaginou.

Olhou para o pai e deu-lhe um abraço apertado e caloroso. Ele não entendeu nada, mas retribuiu o gesto com um beijo na testa. A menina sabia que o pai não andava com a saúde muito boa, sua pressão vivia alta e também tinha fortes enxaquecas. “Será que vai acontecer alguma coisa com o meu pai? Ah, talvez nem seja nada. Ele vai ficar bem”, pensou preocupada. Em seguida, o pai foi trabalhar e a filha foi para a escola.

Do outro lado da cidade, o telefone da mãe toca. Era do hospital: “Sua filha… baleada na cabeça… ferimen… graves… vem depressa!”. Foi tudo o que ela conseguiu processar da ligação antes de sair correndo do serviço. Mais tarde, o Brasil inteiro soube o que aconteceu.

“No dia 23 de outubro, segunda-feira, um aluno de 15 anos da Escola Estadual de Sapopemba entrou armado e disparou contra estudantes. Uma morreu e duas ficaram feridas”.

Uma jovem de 17 anos morreu. Uma menina. Uma estudante. A amiga de alguém. A filha de alguém. O café da manhã vai ser solitário, os amigos perderam a companhia para o teatro e os jogos de vôlei não serão mais um entretenimento, mas sim, uma constante lembrança da ausência de alguém. Os sonhos da jovem foram interrompidos, ela não seria advogada, não teria a alegria de viver e não pôde nem decidir o seu futuro, pois ele foi roubado. E, agora, a dor e o luto farão parte do cotidiano da família.


Izabella Abade é estudante do curso de Jornalismo, integrante do Grupo Gabo de Pesquisa e do Projeto de Extensão Entretons.

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