Chão em chamas

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 1 ano atrás


O autor desses 17 contos inspirou García Márquez a encontrar o prumo de “Cem anos de solidão”. Conhecido pela obra prima “Pedro Páramo”, o mexicano Juan Rulfo “compõe o insólito sem se distanciar do comum. Redimensiona o corriqueiro, o secundário, elevando-o a um novo status”.

Faustino Rodrigues

Juan Rulfo é muito celebrado por seu único romance, de 1955, Pedro Páramo. Contudo, dois anos antes havia publicado Chão em chamas, trazido a lume agora pela José Olympio, com tradução de Eric Nepomuceno. 

Nascido em Jalisco, no México, Rulfo é um escritor digno de estar no panteão dos grandes autores do século XX. Essa é a opinião de ninguém menos que Gabriel García Márquez, admirador de sua obra, ao ponto de alça-lo ao patamar de Sófocles. 

Elogios à parte, Rulfo é um esteta da língua espanhola. E o seu rigor na escrita se faz não pela atenção à norma culta ou à redução ao mínimo com os cortes, segundo o entendimento de Nepomuceno, seu tradutor. O autor que inspirou o escritor de Cem anos de solidão compõe o insólito sem se distanciar do comum. Redimensiona o corriqueiro, o secundário, elevando-o a um novo status. Faz isso durante a década de 1950, quando o foco estava nas novidades decorrentes da urbanização dos países latino-americanos, chamando a atenção da literatura para as cidades em construção. 

Aliás, um tema a perpassar a obra de Rulfo, de maneira muito delicada, porém, potente, é o da ausência de um projeto político eficaz e producente para o México profundo. Essa expressão é utilizada por Guillermo Bonfil Batalla ao abordar a maneira como se deu a integração das culturas locais em nome do desenvolvimento nacional. O processo teria relegado culturas e tradições a um segundo plano, deixando-as quase que exclusivamente no imaginário popular, condenadas ao esquecimento. 

Os 17 contos de Chão em chamas misturam tradição e modernidade. Rulfo ressalta extremos que antes pareceriam inconciliáveis. Vida e morte, amor e dor, natureza e humanidade, tudo isso e muito mais estão presentes, demarcando a narrativa e seus contrastes, cultivando o assombroso para além do óbvio. 

É este o caminho para a leitura de Chão em chamas. Algumas das transformações sociais ocorridas no México compõem o cenário das históricas apresentadas. As consequências de tais mudanças nas vidas dos mexicanos vêm à tona, margeando toda a certeza conferida pela modernidade e urbanização que seguiam avançando. 

A linguagem oral é constantemente mobilizada por Rulfo, promovendo a aproximação com a cultura local. Assim, o narrador se faz presente de maneira diferenciada. Envolve-se sem necessariamente apresentar deduções. Simultaneamente, tem-se a familiarização do leitor com os relatos, ressaltando o seu realismo. 

As conquistas revolucionárias não resolvem os dilemas do campo. O conto E nos deram a terra traz um governo, com sua reforma agrária, distribuindo fatias de solo do chapadão infértil e seco para pequenos agricultores. Em Chão em chamas, conto que deu origem ao título do livro, o milharal é destruído por incêndios durante o período da colheita – o fogo crepita na aliteração do título original em espanhol, Llano en llamas.

Em É que somos muito pobres aparece o lamento de uma família ao ver a vaca prometida como dote de uma das filhas ser levada pela correnteza das chuvas. A lamúria pela perda fica ainda mais evidente quando Tacha teme que, diante da moeda para o seu casamento, tenha o mesmo destino das irmãs: a prostituição. O dia do desmoronamento é um relato sobre o terremoto que assolou um vilarejo, seguido da visita do governador que se mostra um tanto indiferente às mortes em evidência no local. 

Todos esses episódios, entre muitos outros, adquirem sonoridade própria. O reconhecimento da infertilidade do solo a despeito da grandeza do chapadão; o destino atrelado a uma vaca; a fala do governador em meio à tragédia seguida de uma festa, tudo isso evoca a real condição do mexicano. São os relatos dos indivíduos para além da política, do drama, e todo o desdobramento lógico aparentemente previsto para esses casos, enfim, o insólito, que abrem as portas para a configuração do maravilhoso presente no realismo mágico. Eis o ponto de partida para um dos movimentos literários mais importantes dos últimos tempos. Entende-se, agora, a admiração de Gabo.

Se a urbanização pressupõe uma espécie de desencantamento do mundo, a literatura de Rulfo a eviscera e foge à expectativa criada sobre esse mundo lógico moderno em construção. Isso é feito resgatando tradições e reposicionando crenças locais, de maneira a não deixa-las de lado em nome da colonização de uma razão superior, técnica pura. 

Chão em chamas faz o pequeno se tornar grande. Confere voz a um México profundo, permitindo-lhe falar por si mesmo. É a partir dele que uma vaca não pode ser apenas uma vaca, bem como uma terra gigantesca não é só terra. Logo, literatura não pode ser somente literatura. 


Texto publicado sob o título A literatura de um México profundo  n’O Estado de S. Paulo, em 01/08/2021.

Faustino Rodrigues Jornalista, escritor, crítico literário e professor de Sociologia na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Escreve para O Estado de S.Paulo, Revista CULT e Jornal Rascunho.

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