Nos tempos da ditadura Chilena
Revista Jornalismo & Ficção
atualizado 6 meses atrás
Os bastidores da trajetória de Miguel Littín são descritos com maestria por García Márquez. Para passar despercebido, o cineasta vive disfarçado e correndo perigo durante as filmagens do documentário. Esse folhetinsta, postado no @blogdogabo durante os meses de junho e julho de 2020, comenta cada capítulo do livro-reportagem.
Isabelle Teixeira
A aventura de Miguel Littín
O voo de Miguel Littín estava a poucos minutos de pousar no aeroporto de Santiago. Ele chegou acompanhado por Elena, uma militante da resistência chilena enviada para cuidar das comunicações e da segurança de todos. O sonho do cineasta era percorrer todo o território do Chile e gravar um documentário para mostrar a realidade do país. Esse desejo teve que ser realizado de forma clandestina, porque seu nome não constava na lista dos que tinham permissão para voltar para casa.
Um senhor que ocupava alto cargo na resistência interna do Chile se juntou ao projeto de Littín, financiando parte do documentário Actas de Chile. Ambos tinham a mesma ambição: a produção de um audiovisual que denunciasse a situação em que vivia a sociedade chilena.
Montaram três equipes com nacionalidades diferentes e nenhuma poderia saber da existência da outra. Uma mudança drástica na aparência física e psicológica de Miguel Littín faria com que ele passasse despercebido por todos.
Primeira desilusão: O esplendor da cidade
Ao passarem pela alfândega do Chile, Elena e Littín seguiram separados. Não podiam correr riscos. Miguel observava cada detalhe da capital e viajava em recordações… Refletia sobre o atual momento, mas logo teve que entrar no hotel. Já era horário do toque de recolher.
Grazia estava dois andares abaixo do quarto de Littín e Elena. Quando ambos chegaram ela assustou, pois, a aparência de Miguel estava muito diferente. Todos os cuidados foram tomados para não serem ouvidos. A conversa era sobre uma das equipes que já havia chegado ao país e estava buscando lugares para locações que representassem o Palácio La Moneda.
Os que ficaram exilados
Oito horas. Littín pediu para Elena telefonar para Franquie. Nessas ocasiões ele usava o codinome Gabriel para falar com as equipes. Franquie ficaria também surpreso ao chegar e ver Miguel porque não se viam há um bom tempo. Eles eram amigos de longa data.
Franquie era o responsável pelas equipes. Por ser de confiança e ter contatos importantes no Chile. A equipe francesa estava percorrendo o norte do país. A holandesa o sul e a italiana ficaria apenas em Santiago.
Mais um dia de gravação pela manhã na capital chilena. Miguel andava pela Plaza de Armas e observava o comportamento das pessoas. Elas eram menos comunicativas. Andavam mais depressa e quando conversavam pareciam falar em segredo. A todo momento em sua passagem pela Plaza, Littín observava os policiais chilenos, os “carabineiros”.
Os cinco pontos cardeais em Santiago
Por mais cinco dias continuaram as filmagens em Santiago. A cada dois ou três dias era necessário fazer a mudança de hotel, por segurança. Na segunda semana começaram as gravações em viagens de automóveis. A primeira parada foi Concepción. Mas, em Santiago, ainda havia lugares para serem filmados, como o Palácio La Moneda, utilizando uma autorização atrasada.
Em determinados dias de filmagem, pessoas conhecidas eram avistadas por Littín: amigos jornalistas, colegas da política e cultura. Certo dia, caminhando em direção a Miguel surgiu Leo, sua sogra. Por sorte não o reconheceu. O medo quase o desesperou. Na companhia de Franquie, Littín sumiu por três dias viajando para Concepción. Elena não o acompanhou. Assim ficaria mais fácil despistar sua localização.
Um homem em chamas na frente da catedral
Franquie estava contrariado em viajar de trem. A vigia era rigorosa. No final, acabou acompanhando Littín para Concepción. Ao chegar, buscaram por uma barbearia. Não podiam parecer foragidos.
Estavam em Concepción por sua história política. Lá surgiu o movimento estudantil dos anos 60, o apoio a Salvador Allende e o início da repressão sangrenta de 1964. Do táxi observaram as flores perpétuas em homenagem ao trabalhador mineiro que ateou fogo ao próprio corpo para denunciar a tortura imposta aos seus filhos.
Dia seguinte, Littín e Franquie foram para as minas de carvão Lota e Schwager. Filmaram, com muita cautela, o parque e o exterior da mina. Em seguida, clandestinamente, voltaram para Santiago.
Dois mortos que nunca morrem: Allende e Neruda
Nas grandes cidades chilenas encontram-se as poblaciones: os bairros marginais. Lugares que os policiais e o exército mantinham distância naquele período conturbado. Nas poblaciones Littín sentia-se mais livre. Conseguia sentir os ânimos dos moradores a respeito da ditadura e sobre a memória de Salvador Allende.
As lembranças de Allende estavam intactas. Ao percorrer o Chile, Littín encontrava cidadãos que haviam apertado a mão do ex-líder. Ou alguém que tinha conseguido um emprego por meio dele.
Em Valparaíso, cidade natal de Salvador Allende, o culto à sua imagem era ainda mais vivo. Também a antiga casa de Pablo Neruda, em Isla Negra, próxima a Valparaíso, recebe até hoje muitas visitas. Assim, aquela região imortaliza os dois grandes chilenos.
A Polícia Espreita, o círculo começa a se fechar
Miguel Littín filmava em Concepción e Valparaíso. Elena, sua falsa esposa, não estava com ele. Uma regra era estabelecida entre eles: não poderiam ficar muito tempo sem comunicação. Mas, Littín tinha fama de ser imprevisível. Ela esperou. Ele apareceu. Fazia entrevistas com os dirigentes da Frente Patriótica. Um sonho de qualquer jornalista.
A presença de Elena não era mais necessária e se tornava perigosa. Então ela foi embora. Por precaução, as três equipes estrangeiras deixariam o país. Miguel montou equipes chilenas. Jean Claude era o responsável pela equipe francesa. Ele e Littín estavam filmando nas ruas. Miguel conseguia reconhecer um policial disfarçado. Reconheceu um que os observava. O policial os identificou. Para despistar o “carabineiro” tiveram que se separar. Por fim, conseguiram sair ilesos de mais esta perseguição.
Atenção: Há um general disposto a contar tudo
Assim que chegou ao Chile, Miguel fez questão de entrar em contato com antigos amigos. Eloísa, que trabalhou com ele na campanha de Allende, era casada com um homem rico e influente. Para ajudar Littín, sua amiga lhe apresentou a sogra. Uma mulher com atração por aventuras, conhecida por Clemencia Isaura.
A tarefa de encontrar – pelas poblaciones – cinco amigos de Littín ficou por conta de Eloísa. Em uma semana ela havia encontrado três deles. Assim formaram a primeira equipe de filmagem chilena. Uma das conquistas de Eloísa foi conseguir contatar um general. Clemencia Isaura foi a responsável em fazer a ponte com Littín. Mas, ainda faltava o general concordar em gravar a entrevista. Seu codinome era General Eletric.
Nem minha mãe me reconhece
Depois de um mês de filmagens no Chile, já estava ficando perigoso a presença de todos. Muitas pessoas sabiam sobre o documentário. Littín não conseguia mais se fingir de uruguaio. Ainda havia algumas locações para filmar: Palácio La Moneda, Puerto Montt e Vale Central. Além da aguardada entrevista com o General Eletric.
Franquie e Miguel Littín foram para Buenos Aires. Miguel concederia uma entrevista para a revista Análisis. Antes de ir, não se identificou. O título da matéria: “Littín veio, filmou e se foi”. A ideia de Miguel era mostrar que esteve no Chile, mas já tinha ido embora. Depois voltaria para terminar o trabalho.
De volta ao Chile. De volta às filmagens. O momento do retorno para Santiago era o horário do toque de recolher. Sendo assim, Littín e Ricardo entraram em uma estrada de terra qualquer para se esconderem. Mas, o percurso dava acesso ao lugar onde Miguel passou parte de sua vida. Lá ele encontrou a casa de sua mãe. Ela estava sentada em sua cadeira. Quando o viu, não o reconheceu. Littín se apresentou. A emoção tomou conta naquele momento.
Final feliz com a ajuda da polícia
A equipe de filmagem francesa saiu do Chile para Madrid com alguns materiais gravados. Já, a equipe italiana estava filmando o gabinete do general Pinochet, no interior do Palácio La Moneda com a presença de Littín. Após o término das filmagens no La Moneda, a equipe italiana também saiu do país com o restante das gravações.
Miguel e Franquie permaneceram no Chile mais quatro dias na esperança de falar com o General Eletric. Começou a ficar perigoso para os dois. Littín foi para a casa de Clemencia Isaura a pedido de Franquie, pois tinham policiais à paisana especulando por eles no hotel. O momento de sair do Chile havia chegado.
Os dois amigos conseguiram chegar a tempo no aeroporto. Foram os últimos passageiros do embarque. Antes da decolagem uma revista. Havia suspeita de um penetra no avião, mas não o encontraram. Por fim, não era um penetra apenas. Os penetras passaram despercebidos. O documentário, lançado em 1986, está disponível no site do Youtube e Vimeo ACTA GENERAL DE CHILE.