Gabriel García Márquez: jornalismo e ficção

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 5 meses atrás


A coletânea de estudos, reflexo da produção do Grupo Gabo de Pesquisa, saiu pela Eduel, em 2023. O livro, organizado por Maria Cecília Guirado, aborda aspectos jornalísticos e literários da obra de García Márquez, está concorrendo ao Prêmio Jabuti Acadêmico.

Para compreender as palavras de Gabriel García Márquez, o mágico Gabo, foi idealizado um projeto de pesquisa, em 2012, na Universidade Estadual de Londrina. […] No ano seguinte a ideia cresceu, dando lugar ao projeto de adaptação de Doze contos peregrinos  para a linguagem radiofônica […] transformou-se no “Conto falado da literatura para o rádio: imagens da América Latina”, veiculado pela Rádio UEL-FM, entre abril e julho de 2014. […] Alguns participantes da pesquisa embrenharam-se pela iniciação científica, outros levaram a experiência “gabiteira” adiante para criar outras estéticas.

O Grupo do Gabo – como passou a ser chamado na UEL – gerou trabalhos de conclusão de curso, dissertação de mestrado, participações em congressos, artigos científicos e matérias jornalísticas. A esse material somou-se a produção acadêmica dos alunos que frequentaram a disciplina “A realidade mágica na obra jornalística de García Márquez”,[…] no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo, na UFSC. Desse modo, a coletânea materializou-se com o propósito de despertar novas reflexões sobre “o melhor ofício do mundo”, como dizia García Márquez.

Uma conversa infinita entre ficção e realidade

José Maschio

A ficção nunca supera a realidade. O alerta, ou mesmo a advertência, deve ser cotidiana para o repórter. Isso se o editor, ou o chefe de reportagem, for preocupado com o jornalismo. Ou seja: não for um desses maluquetes que permeiam redações de jornais a serviço do baronato da imprensa adestrada da América Latina.

Esse alerta serve aos “esquentadores” de notícias em busca de um sensacionalismo sempre desnecessário. É muito mais que isso no universo latino-americano. É que na espoliada América (não a do Norte, espoliadora) o cotidiano é sempre um misto de fantasia, de magia e de coisas tão extraordinárias que o fio que separa realidade e ficção é quase imaginário.

Gabriel García Márquez, o Gabito que virou Gabo, viveu toda a sua vida a tentar, tal qual equilibrista de circo que ele tanto adorava, se manter sobre esse fio imaginário, seja como contista, romancista ou a exercer “o melhor ofício do mundo” como definia seu trabalho na reportagem jornalística.

A realidade mágica do caribenho García Márquez

Maria Cecília Guirado

Soy un periodista […] mis libros son libros de periodista aunque se vea poco. Pero esos libros tienen una cantidad de investigación de datos y de rigor histórico, de fidelidade a los hechos, que en el fondo son grandes reportajes novelados o fantásticos, pero el método de investigación y de manejo de la información y los hechos es de periodista (Entrevista concedida a Darío Arizmendi, em 1991).

A narrativa cuidadosa e detalhista do cotidiano mostra um texto polido, que encadeia fatos reais e imaginários. Seria simples descrever, desse modo, o estilo do jornalista e escritor Gabriel García Márquez (GGM), aclamado como o maior romancista latino-americano do século XX. Compreender a carpintaria literária, somada às técnicas jornalísticas, demanda atenção especial sobre a vida e a obra do autor.

Cem anos de solidão: entre a imagem e o texto

Lucia Helena Bahia

[Disse Gabo em entrevista:]

_ “El origen de todos mis relatos es siempre una imagen simple. […] Durante muchos años, lo único que sabía de Cien años de soledad era que un viejo llevaba a un niño a conocer hielo, exhibido como curiosidad de circo” (FERNÁNDEZ-BRASO, 1969, p. 99)

– “yo siempre creí que el cine, por su tremendo poder visual, era el medio de expresión perfecto” (FERNÁNDEZ-BRASO, 1969, p. 38)

E apesar de ter notado, após trabalhar com essa técnica, que o predomínio da imagem sobre outros elementos narrativos pode ser tanto um benefício quanto uma limitação, a experiência de García Márquez com o cinema contribuiu para a ampliação de suas perspectivas como romancista.

[…] Cem anos de solidão retrata a sobrevivência da família dos Buendía desde a fundação de Macondo até o fim de sua estirpe, já na sétima geração. Como a maioria dos contos e romances elaborados por Gabo transpassam uns aos outros, não seria diferente com uma de suas obras mais desconcertantes. Assim, a primeira aparição de Macondo está no romance A revoada (O enterro do diabo), publicado em 1955, em Barcelona, com o título original La Hojarasca.

Macondos da América Latina

Marcionize Elis Bavaresco

Ao ler pela primeira vez Cien años de soledad, de Gabriel García Márquez, pode-se relacionar Macondo a muitas pequenas comunidades do interior da América Latina. O texto consegue ilustrar, ao mesmo tempo, a sensação de aconchego familiar e a de não existir para o resto do mundo, sentimentos típicos de quem vive nas periferias ou zonas interioranas. É provável que esse seja um dos motivos para que tantos latino-americanos, até hoje, se enxerguem nas páginas do mais conhecido livro de Gabo.

Em busca do método do repórter Gabo

Magali Moser 

[…] García Márquez defendia que o jornalismo o ajudou a escrever, a partir de crônicas e reportagens. Recorreu a técnicas narrativas aprendidas no ofício para redigir contos e tramas ficcionais.

Apesar de ter ingressado como colunista na carreira jornalística, foi a reportagem que lhe conferiu notoriedade. As contribuições do contador de histórias Gabo requerem uma análise aprofundada para os estudos do jornalismo, especialmente da reportagem, pelo menos por dois aspectos: o processo de apuração e os recursos narrativos.

Lições de jornalismo em Relato de um náufrago

Caroline Souza

Há quem diga que o bom e velho jornalismo está morrendo. Com o avanço das tecnologias midiáticas, existem muitos recursos que podem auxiliar na produção de uma reportagem, mas eles não garantem a excelência da produção.

Nas redações, a necessidade de dar a notícia primeiro que o concorrente enterra qualquer oportunidade de refletir a fundo sobre o fato a ser reportado. Hoje, diz-se que a fantástica fábrica de notícias está minimizando o gênero jornalístico que o escritor e jornalista Gabriel García Márquez considerava mais brilhante: a reportagem.

O homem da rua nas avenidas virtuais

Mariane Pires Ventura

Em maio de 1950, Gabriel García Márquez escreve na coluna “La Jirafa”, do jornal El Heraldo, uma crônica chamada “El hombre de la calle”. O texto fala sobre a figura múltipla e contraditória que é esse homem que manifesta sua opinião sobre “La Jirafa” quando encontra o jornalista nas esquinas, ora concordando e ora discordando do seu texto, e “que discute rabiosamente consigo mismo sin llegar nunca a una conclusión definitiva” (García Márquez, 2015, p. 266).

No decorrer da leitura, nota-se que o homem em questão não é uma pessoa única, mas um conjunto de pessoas; o homem da rua é, na verdade, a opinião pública.
Um cidadão anônimo, que é convertido numa espécie de entidade que aparece nos jornais como estatística, gráficos, afirmativas meramente declaratórias ou ilustrativas.

Processo de criação dos Contos peregrinos

Criselli Maria Montipó

As forças contraditórias de um subdesenvolvimento acelerado e uma modernização crescente, além das truculências do autoritarismo, forçaram muitas pessoas a saírem da América Latina nos anos 60 e 70 do século XX.

Este é o pano de fundo da obra Doze contos peregrinos, publicada por García Márquez, em 1992. O livro levou quase 20 anos para ser concluído e reúne histórias de latino-americanos na Europa. Os contos descrevem, de forma real e mágica, aventuras de personagens exilados na terra de seu colonizador.

Um jornalismo que constrói realidades

David Lara Ramos 

Antes de Gabriel García Márquez começar a escrever em formatos reconhecidos como jornalísticos, ou a trabalhar como repórter na redação de um diário, seus referentes criativos estavam mais próximos da ficção, da poesia, do conto ou do romance, do que da crônica e da reportagem ou qualquer outro tipo de formato enquadrado no que hoje conhecemos como literatura de não-ficção.

[…] Desde sua jovem formação, a leitura para Gabo não foi um exercício de gramática passiva, mas uma forma ativa de esquadrinhar o uso de palavras, construção de frases, tamanho dos parágrafos, apresentação de ações e mudanças estilísticas em busca da perfeição do texto, o que só é possível com esforço do narrador. Gabo exercia uma atenta “vigilância” sobre as formas e estilos de tudo que lia para depois prová-los em suas próprias criações.

Era tudo verdade

Linda Bulik

Lançar âncoras ao mar caribenho e resgatar do fundo do oceano uma conversa infinita entre (e sobre) ficção e realidade, eis o escopo deste livro, resultado de anos de pesquisa e de reflexões em torno das fronteiras entre jornalismo e ficção em Gabriel García Márquez.

Trata-se de obra de fôlego, para não dizer um “tour de force” pela determinação, pelo foco, pelo empenho, pela ousadia e pela coragem dos autores que encararam o desafio de se dedicar com afinco ao tema e, agora, trazê-lo a lume.

A dona do morto

Sara Bozzi

A imprensa mundial relatou com alegria a notícia sobre o grande triunfo universal de Gabriel García Márquez. Em particular, os jornalistas do Caribe se sentiram honrados. Tem um ditado na costa norte que é usado para descrever os sentimentos próprios das pessoas quando algo extraordinário acontece na vida do povo: pode ser um batismo, casamento, reinado, velório, luta de box, ou Prêmio Nobel de Literatura.

Dizer que fulano acredita ser “o dono do morto”, quer dizer que alguém, de alguma forma, quer se identificar com o compadre de turno, congraçar-se com a personagem do momento ou participar diretamente de um grande acontecimento. Foi exatamente isso o que aconteceu ontem na Colômbia quando acordamos de madrugada com a notícia do Prêmio Nobel de Literatura concedido ao maior escritor de todos os tempos: Gabriel García Márquez (Publicado no jornal colombiano El Liberal, de Popayán, em 28 de outubro de 1982).


Maria Cecília Guirado (org) Jornalista pela UEL e pós-doutora em Jornalismo pela UFSC. Professora do Departamento de Comunicação da UEL, onde coordena o Grupo Gabo de pesquisa desde 2012.

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