O gosto da guerra
Revista Jornalismo & Ficção
atualizado 8 horas atrás

José Hamilton Ribeiro transforma a guerra do Vietnã em uma experiência sensorial e humana, onde dor e esperança se misturam em cada relato. Mais que um registro histórico, o livro-reportagem, O Gosto da Guerra, é um mergulho na essência humana diante do horror de um combate armado.
Por Isadora Chanan
Em O Gosto da Guerra, José Hamilton Ribeiro se atreveu a explorar o conflito do Vietnã (1955 a 1975), ocorrido entre Estados Unidos e o Vietnã do Norte, apoiado pela União Soviética, sob uma ótica única, longe da análise geopolítica fria e distante. Ao invés de se perder em números e dados, ele mergulha na essência humana, na visceralidade do que é viver a guerra. Ele, aos 33 anos, escolheu conhecê-la de perto e não apenas reportar sobre ela a quilômetros de distância. No livro-reportagem, publicado em 1968, fica claro que uma guerra não é apenas uma sequência de batalhas; é o cotidiano de pessoas consumidas pela dor, pelo medo, pela fome e pela desconfiança. É o gosto amargo de mentiras e da morte, mas também, o sabor da esperança, da resistência e, talvez, de fé em milagres.
O título é significativo: o gosto da guerra não é metafórico, é literal. Hamilton, hoje com 90 anos, revelava esse gosto em sua escrita simples e direta, mas profunda. Ele não narrou apenas fatos, mas também os detalhes que fazem da experiência da guerra algo muito mais visceral; sensorial do que poderíamos imaginar apesar da distância e do tempo que nos separa aos eventos, os cheiros, as cores, as sensações da humanidade e da destruição. Cada um desses detalhes carrega um sabor próprio e, por mais paradoxal que pareça, é esse “sabor” que o autor nos convida a experimentar com sua escrita.
A guerra, em sua totalidade, não é só composta pelas batalhas e confrontos. O repórter se permitiu olhar para o cotidiano daquelas pessoas, para o que acontecia fora dos campos de batalha, como as crianças que circulavam em imundice, “não deixa de ser também uma imagem da guerra” (p. 21). Ele observa, com empatia e sensibilidade, as contradições e os dilemas morais daqueles que, sem escolha, se veem envolvidos na guerra daqueles que a escolheram.
Nesse contexto, a guerra se torna também um campo de questionamentos sobre a moralidade, sobre os pecados e o perdão, como “o catolicismo precisou ser adaptado ao Vietnã, onde ‘mentir e roubar não é pecado’” (p. 23). É com essa sensibilidade que Ribeiro tratou a realidade da guerra. Como a guerra cria uma necessidade de repensar valores, esse é um dos aspectos mais fascinantes do livro. Além da visão maniqueísta, há uma análise das complexidades e da ambiguidade moral que surgem quando se experimenta o gosto da guerra; física e psicológica.
Ao escrever sobre sua própria experiência, José Hamilton Ribeiro também se torna um reflexo daquilo que a guerra faz com o ser humano. Ferido por uma mina terrestre, ele perdeu a perna, e ali ele poderia ter encerrado a reportagem que elaborava para a revista Realidade. Mas não, ao relatar o horror sem se deixar desumanizar, ele nos convida a questionar o que é realmente viver em meio a uma guerra: não apenas as cenas de combate, mas a vivência de um mundo onde a confiança e a verdade se desfazem. Ele nos convida em O Gosto da Guerra, a repensar os horrores de um conflito armado, que não podem ser ignorados.
O livro nos faz analisar o milagre da guerra. É um milagre em meio à destruição da humanidade a resiliência em não se perder completamente diante do caos. Para isso Zé Hamilton conta com algumas figuras, Nguyen, intérprete que sonhava em ser jornalista, por isso acompanhou o repórter durante a cobertura da guerra no Vietnã junto com o fotógrafo japonês Shimamoto. Hamilton revela que chegou a desejar que o fotógrafo viesse trabalhar com ele na revista Realidade. Mas, Shimamoto morreu antes que isso pudesse acontecer. O milagre é esse, a sobrevivência da memória, a possibilidade de contar a história, de fazer com que o sofrimento não seja esquecido, reproduzido e repetido.
Ao final da leitura de O Gosto da Guerra a sensação é de que todo o horror que se vive em uma guerra acaba despertando a capacidade de empatia ou evidenciando a insensibilidade diante da violência. José Hamilton Ribeiro não se limita a ser um observador da guerra, torna-se um contador da verdade. Seu olhar aguçado de repórter mostra como ele viveu no inferno daquele tempo no Vietnã. Apesar disso, o livro-reportagem não demonstra ódio, o príncipe dos repórteres escreve sobre o gosto de sobreviver a uma guerra.
Isadora Chanan é estudante de Jornalismo na UEL, participa do Grupo Gabo de Pesquisa, com o projeto de IC: “Jornalismo literário em Gosto da Guerra, de José Hamilton Ribeiro” e escreve para a Revista Jornalismo & Ficção na América Latina.