O Bruxo do Cosme Velho

Revista Jornalismo & Ficção


atualizado 2 dias atrás


Machado de Assis é um dos escritores mais estudados do Brasil. Ao longo da vida, produziu notícias, crônicas, peças de teatro e romances que foram analisados por diversas vezes durante os séculos XX e XXI.  Neste perfil, falaremos um pouco mais da postura jornalística e dos encontros e reencontros com a literatura. Machado de Assis soube equilibrar as duas coisas com maestria e inspirou muitos jornalistas literários que vieram depois.  

Por Luiza Zottis 

Não há muito que já não tenha sido dito ou escrito sobre o “Bruxo do Cosme Velho”, mais conhecido como Machado de Assis, durante todo o século desde sua primeira publicação. Em qualquer pesquisa básica é possível saber que ele foi um carioca nascido em 1839 e de origem humilde. É fixo no imaginário popular a atividade do autor com as crônicas, com as ironias, com o popular dilema “traiu ou não traiu?”. É difícil ter algo a acrescentar às milhares de análises sobre um dos mais importantes escritores do Brasil.  

Mas coisas curiosas sobre a figura de Machado de Assis vão muito além da hipotética traição de Capitu ou dos romances ensinados e revisitados em todas as escolas brasileiras. Machado foi um exímio jornalista, e essa experiência no jornal marcou sua carreira como escritor e romancista.  

Segundo uma lenda popular, o apelido de Bruxo se originou a partir dos vizinhos do autor que o viam queimando cartas em um caldeirão, e sua casa se localizava na rua Cosme Velho. Mais tarde, um poema de Carlos Drummond de Andrade, publicado no Correio da Manhã em 1958 referencia Machado de Assis como um feiticeiro. “A um bruxo, com amor”, Drummond de Andrade compara a maestria literária com bruxaria.  

Machado de Assis foi um homem autodidata, sempre teve uma afinidade com a literatura e aprendeu desde cedo a arte de escrever. Aos catorze anos publicou seu primeiro soneto “À Ilma, Sra. D.P.J.A.” no Periódico dos Pobres. Em 1855, o primeiro poema, “Ela”, foi publicado no Marmota Fluminense.  

Começou a carreira no jornal em 1856, como aprendiz de tipógrafo, e quatro anos depois já era redator do Diário do Rio de Janeiro. Machado também escrevia para A Semana Ilustrada, O Jornal das Famílias  e O Espelho. E devido a sua proximidade prévia com a literatura, focou em escrever mais contos e crônicas do que notícias e manchetes. 

Muito se diz sobre as suas duas fases: ingênua e madura. A primeira, romântica, trata de temas amorosos e de idealização. Já a segunda, realista, pesa em críticas sociais e ironias. Mas o que houve antes disso, no princípio de um gênio literário, foi um cronista jornalístico.   

O que há de interessante nesse início da carreira de Machado de Assis foi a linha tênue que ele conseguiu traçar entre a literatura e o jornalismo. Especialmente durante a série de crônicas “A Semana”, que se passa em um momento político tenso: O início da república. Em suas crônicas iniciais, Machado de Assis encontrou um jeito de noticiar os eventos semanais do mundo político e social brasileiro apenas por meio de suas crônicas.  

 Nessa época, as crônicas já contavam com o caráter irônico e sarcástico de Machado, mas também tinha outro elemento: compostura neutra. Diferente dos escritores contemporâneos à Machado na Primeira República, havia algo contido e jornalístico em suas obras: informar e deixar o leitor pensar para tirar as próprias conclusões. 

Conforme ele foi se acomodando nessa ponte entre o jornalismo e a literatura, entrou em sua fase romântica. Livros como “Ressurreição” e “Helena” tratam de temas romancistas, relações pessoais e ascensão familiar.  Apesar do caráter tido mais tarde por historiadores como “ingênuo”, Machado manteve sua conduta aprendida no jornal para mostrar os fatos ao longo dos textos literários.  

Em 1881, iniciou sua fase madura com o icônico “Memórias de Brás Cubas”. Aqui, retornou a sua persona irônica com mais força que nunca e usou muito de críticas sociais para elaborar seus livros e crônicas. O sarcasmo e realismo tidos quando jornalista se mantiveram muito presentes aqui.  

“Se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?”. Essa frase do livro “O Alienista”, mantém reflexos de uma análise jornalística por parte de Machado. Mantém explícita uma crítica social, mas por meio de um questionamento, de modo que não há necessidade da opinião ser traçada diretamente.  

Machado de Assis deixou um legado para a sociedade brasileira. O narrador desconfiado e bem posturado de suas obras românticas, realistas, jornalísticas marcou e transformou o jeito de se produzir e consumir literatura no país. Suas análises do caráter humano, da política e as denúncias da elite brasileira. 

A ponte entre jornalismo e literatura foi cruzada por outras incontáveis vezes na história do Brasil, mas Machado de Assis se destacou por sua maestria e versatilidade. E é apenas um dos motivos de ter se tornado uma figura imortal e lendária para a literatura brasileira.  


 Luiza Zottis é estudante de Jornalismo na UEL, participa do Grupo Gabo de Pesquisa onde desenvolve estudos sobre “Machado de Assis e suas crônicas jornalísticas” e faz parte da equipe da revista Jornalismo&Ficção na América Latina.  

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