“E se fosse seu filho?”: audiência pública em Londrina expõe denúncias de abusos e cobra providências contra a violência policial
Revista Jornalismo & Ficção
atualizado 9 horas atrás

Famílias denunciam abusos policiais e exigem justiça em audiência pública na OAB – Ordem dos Advogados do Brasil de Londrina, marcada por depoimentos comoventes de mães que perderam filhos em ações violentas das forças de segurança. Entre relatos de execuções, silenciamento e impunidade, a audiência revelou o drama cotidiano de comunidades marcadas pelo luto e pela ausência do Estado. Enquanto o número de mortos em confrontos cresce em todo o Paraná, Londrina se torna o epicentro da letalidade policial proporcional, levantando questionamentos sobre quem realmente é protegido pela farda e quem segue morrendo sem voz, sem justiça e sem rosto.
Texto e fotos por Manuela Domingues
O aumento da violência policial em Londrina foi o tema da audiência pública que aconteceu na noite da última quinta-feira, dia 8, no auditório da OAB – Subseção de Londrina. Nomeada como “Segurança em Questão: Denúncias de Abusos Policiais em Londrina”, a audiência foi convocada pela Comissão de Direitos Humanos e da Cidadania da Assembleia Legislativa do Paraná (Alep), atendendo a solicitação formal feita pelo deputado estadual Arilson Chiorato (PT), feita um mês antes. A audiência foi presidida pelo deputado estadual Professor Lemos (PT).
A mesa foi composta por 15 nomes, sendo eles:
Professor Lemos, deputado estadual e presidente da Comissão de Direitos Humanos e da Cidadania da Alep;
Arilson Chiorato, deputado estadual;
Doutor Luiz Valério dos Santos, juiz de direito e diretor do fórum criminal de Londrina, representando o poder judiciário do Paraná;
Marcos Daniel Veltrini Ticianelli, secretário geral da subseção da OAB de Londrina;
Walter Tierling Neto, vice-presidente do Conselho Permanente dos Direitos Humanos;
Paula Vicente, vereadora de Londrina;
Vanessa Pereira da Costa, do movimento mães da Bratac;
Alisson Fernando Moreira Poças, coordenador do Centro de Direitos Humanos de Londrina;
Valdirene Inácio da Silva, fundadora do movimento Justiça Por Almas;
Sirlene Vieira dos Santos, coordenadora do movimento mães da Bratac;
Haydée Melo, coordenadora do movimento Justiça Por Almas;
Maria Isabel Araújo, da Procuradoria Federal, Advocacia Geral da União, Procuradora Chefe da Procuradoria Seccional Federal de Londrina;
Tadeu Veneri, deputado federal;
Lenir de Assis, deputada federal;
Dois convidados não estiveram presentes:
Claudio Melo, do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Londrina;
Leandro Antunes Meirelles Machado, promotor do Ministério Público do Paraná, representando o procurador geral de justiça do Ministério Público;
Em um exercício democrático, a audiência teve o objetivo de escutar o clamor dos cidadãos que estavam presentes, em grande maioria familiares, amigos e vizinhos das vítimas de violência policial. O debate buscou discutir meios de diminuir e impedir a morte ocorrida em supostos confrontos policiais, além de dar um rosto para as vítimas dessa violência: em uma espécie de mural, a foto, nome, data de nascimento e morte das vítimas estava exposta no chão da OAB, além das fotos e nomes presentes nas camisetas das mães, pais, irmãos e amigos dessas vítimas.
Mas o rosto de quem morre não é o único rosto afetado pela violência fardada: a família que chora, que se enfurece, mas que acima de tudo luta por justiça, também compõe o mural de uma comunidade que sofre pela omissão do Estado. E os algozes dessas famílias? Seguem sem rosto.

Foi discutido em audiência, principalmente, a implementação de câmeras corporais e nos carros oficiais dos policiais, a transparência nas investigações de casos de violência e o acompanhamento psicológico dos agentes. O Professor Lemos garantiu que as reivindicações serão ouvidas e que os deputados trabalharão para que se tornem realidade.
Lemos também informou que já existe um projeto de lei, apresentado pelo deputado Tadeu Veneri e assinado pelos deputados Professor Lemos, Arilson Chiorato, Requião Filho, Ana Julia Ribeiro, Renato Freitas, Luciana Rafagnin, Doutor Antenor e Goura, pela obrigatoriedade da instalação de câmeras corporais e nas viaturas policiais do Paraná. O PL 448/2019 já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), já foi aprovado no Plenário da Assembleia Legislativa do Estado do Paraná e precisa novamente passar pelo Plenário para ser aprovada.
A violência policial em Londrina
Em reportagem publicada na Folha de Londrina, é divulgado um balanço realizado pelo MP-PR em parceria com o Gaeco e o Gaesp, em que foi exposto que o número de mortes em confrontos policiais em Londrina teve um aumento de 69%. De 2022 para 2023, o número de mortes caiu para 42%, porém voltou a crescer em 2024.
O número de mortes não cresceu apenas em Londrina, mas em todo o Paraná. Em 2023, 348 pessoas morreram. Em 2024, 413 pessoas morreram. 50% dos mortos eram negros.
Vale ressaltar que Londrina, a cidade universitária, é o segundo município com mais mortes decorrentes de intervenções policial no Paraná, atras apenas de Curitiba. A capital mundial do café também lidera o ranking da violência policial proporcional, com 7,7 mortos a cada 100 mil habitantes.
Grande parte dessas mortes é justificada sob o pretexto de que os policiais agiram em legítima defesa, porém o argumento se contrasta com o número de disparos no caso da morte do Kelvin Willian Vieira dos Santos, de 16 anos, e do Wender Natan da Costa, de 20 anos, assassinados no dia 15 de fevereiro de 2025. Os jovens foram mortos com 15 tiros de fuzil.
A mesma coisa acontece no assassinato do Anderbal Campos Bernardo Júnior e do Willian Jones Faramilio da Silva Junior, mortos no dia 6 de maio de 2022. Os jovens foram alvo de 50 disparos.
A morte e a vida das mães que ficam
Ainda em audiência, as mães de diversas vítimas foram ouvidas, como Vanessa Pereira da Costa, mãe do Wander, e Sirlene Vieira dos Santos, mãe do Kelvin, ambas do movimento Mães da Bratac. Também discursaram Haydée Melo, coordenadora do movimento Justiça Por Almas e tia do Willian Junior, e Valdirene da Silva, mãe do Anderbal Júnior. Marilene Ferraz, mãe do Davi Gregório, assassinado aos 15 anos, e Márcia de Oliveira, mãe do Kauan de Oliveira, morto aos 20 anos, também puderam se manifestar.
Na audiência pública que durou pouco mais de três horas e meia, em uma quinta feira que precede o Dia das Mães, essas mulheres precisaram, mais uma vez, clamar por justiça. Haydée e Valdirene relembraram que no Dia das Mães de 2022, passaram o domingo velando o sobrinho e o filho. Mas a tortura não acaba no dia do velório, do enterro ou da missa de sétimo dia. Como foi pontuado pela Marilene Ferraz, as mães são violentadas todos os dias pela manhã, assim que abrem os olhos e se lembram que os filhos não estão mais em casa, no quarto ao lado.
Sirlene, mãe de Kelvin, falou como mãe e cidadã, e disse que o filho gostava muito de brincar com as crianças do bairro e tinha muitos amigos, um deles é um garotinho de quatro anos, que disse para a mãe que queria ir morar no cemitério para ficar junto do amigo Kelvin. Sirlene questionou qual futuro o Estado quer para a sociedade, pois os jovens de hoje serão as autoridades que irão compor as mesas de audiências que acontecerão amanhã. Os jovens que moram na Bratac, na Gleba, no Shangri-lá ou no Centro Histórico serão professores, médicos, advogados, jogadores de futebol e jornalistas, mas que futuro eles encontrarão? Esses jovens terão o direito de crescer?
As mães também questionaram o papel da mídia diante da morte desses garotos, que morrem fisicamente e tem a reputação assassinada por uma imprensa que fareja o cheiro de sangue. Como seria, para você, ver alguém debochando na morte do seu filho na televisão?

No ano de 2025, o Brasil ganhou seu primeiro Oscar com o filme Ainda Estou Aqui , que retrata a trajetória de uma mãe que lutou pela justiça na morte do marido, que lutou para criar os próprios filhos. Londrina fechou bares, festas de carnaval e cinemas para comemorar a conquista de um filme que homenageava uma mãe. Mas e as mães que lutam hoje, na nossa cidade? E as mães que choram, que clamam para que a justiça funcione sobre aqueles que tiraram delas o seu bem mais precioso? E as mães que são presas, que são xingadas, que são agredidas por homens na frente dos nossos olhos, apenas por se indignarem com a violência que recaiu sobre seus filhos? E as mães que na quinta-feira, durante três horas, brigaram para serem ouvidas? Não estou contra o filme, nem contra o Oscar, mas é preciso olhar por essas mães que estão de luto hoje, na nossa cidade. Londrina não fecha bares nem cinema por elas. Londrina não dedica nem cinco minutos de nota na rádio pela luta dessas mães. Londrina não para festas de carnaval por essas mães. Essa história não vai para as telas de cinema, muito menos para o Oscar. Por quê? Faço aqui o mesmo questionamento que Marilene Ferraz fez ao final de sua fala: E se fosse seu filho? O que você faria?
Manuela Domingues, estudante de Jornalismo da UEL, professora de redação, participa do Grupo Gabo de Pesquisa. É revisora e editora da Revista Jornalismo & Ficção na América Latina.