Se o caminho é mais importante que o destino, então vamos aproveitar a viagem!

Por Gabriela Gonzaga Cher


atualizado 3 anos atrás


Introdução

Nos dias 27 de outubro e 10 de novembro, o GECCE se propôs a discutir a obra “Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica” (1994), de Bruno Latour, com tradução de Carlos Irineu da Costa. A proposta inicial era ler e analisar o texto tendo em vista, principalmente, o processo de mediação. E, por que esta obra? Por que Bruno Latour? 

Bem, pensando que se trata de um grupo que estuda e pesquisa a atividade científica por meio de suas minúcias, seus cruzamentos com a vida social e levando em consideração a complexidade da teia que forma a realidade, Bruno Latour vem ao encontro de nossos propósitos, uma vez que pensa e nos apresenta uma maneira de relacionar a sociologia e a prática científica de modo cuidadoso, detalhista e busca superar o entendimento oferecido pela sociologia tradicional acerca dessa relação.

No ensaio analisado, Latour faz críticas ao mundo dito moderno (e que, segundo ele, jamais o foi), apontando incoerências entre os acordos modernos e o que realmente tem sido feito em relação à atividade científica. A nossa jornada se inicia com uma visita ao passado que não existiu: a modernidade e, depois, embarca no trem que parte para um possível futuro: a não modernidade.

A modernidade: faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço

As discussões se iniciam com alguns questionamentos, “quem é o autor?”, “qual a proposta?”, no sentido de qual seria a sua intenção. Latour certamente tem o objetivo de demonstrar, ou até mesmo provar, com exemplos históricos – o desenvolvimento da bomba a vácuo por Boyle e a teoria política de Hobbes –, como o acordo moderno se contradiz quando coloca em prática sua Constituição.

Prosseguindo a discussão pelo que seria a modernidade, algumas características são apontadas: dicotomias, linearidade, sistematização. As dicotomias/dualismos são pontos centrais no pensamento moderno: mundo natural e mundo social; macro e micro; dentro e fora; sujeitos e objetos, ou, em uma linguagem latouriana, humanos de um lado e não humanos de outro. A purificação (isto é, “puramente social” ou “puramente natural”), a divisão, a separação, a fragmentação são, para os modernos herdeiros de Descartes e Kant, processos fundamentais na forma de pensar e o motivo de seu progresso enquanto sociedade ocidental.

A linearidade – do pensamento, do tempo, da evolução – e a sistematização também são marcas de uma modernidade que sempre precisou organizar tudo e todos de modo que os nós devem ser desatados a fim de colocar cada novelo em sua devida gaveta. Não pode haver emaranhados, nós, confusão, caos. Tudo deve seguir linha reta. No mundo moderno, o que é considerado social não pode se misturar com o que é considerado natural, nem sujeitos podem se miscigenar com os objetos. 

Mas se olharmos atentamente para o mundo, percebemos que ele está repleto dessas misturas que Latour denomina de híbridos, ou ainda, inspirado em Serres, de quase-objetos. O autor nos apresenta ao longo do texto inúmeros exemplos destes quase-objetos (aquecimento global, embriões congelados, buraco da camada de ozônio) e questiona o quão podem ser separados em “partes naturais” ou “partes sociais”, e a dificuldade que encontramos em apontar o que pertence a uma esfera e o que pertence a outra ilustra como a mistura de humanos e não humanos, fatores sociais e naturais, não são a simples junção dessas partes, mas algo mais parecido com um espectro de cores, em que as fronteiras do social e do natural são praticamente imperceptíveis.

Dentre as críticas tecidas por Latour em relação ao pensamento moderno, a contradição entre o que a Constituição diz (não mistureis!) e o que eles fazem (proliferação de híbridos) é um dos motivos pelos quais considera que jamais fomos modernos. Na prática, progressivamente, combinamos e recombinamos elementos naturais e sociais, humanos e não humanos em diferentes “gradientes de concentração”. Mas o problema não é a simples hipocrisia moderna. Além de fazerem o que disseram para não fazer, não reconhecem o papel, ou melhor, a atuação dos híbridos na rede sociotécnica, nem a mediação no que concerne à multiplicação dos quase-objetos, atrelando a este fato apenas o processo de purificação.

A discussão, então, se volta para a bomba a vácuo como maneira de iluminar o entendimento a respeito da purificação e proliferação dos híbridos. Argumenta-se: a) Como o vácuo passa a ser um ator? b) É uma criação natural ou invenção humana? Se tivéssemos feito essas perguntas para Latour, ele possivelmente responderia: a) A partir do momento em que o vácuo age e sua ação causa o deslocamento/transformação de outros atores ou eventos, ele é um ator e b) é uma criação natural porque não fomos nós que o criamos e é uma invenção humana, porque nós o instauramos. 

Mas como exatamente a purificação ansiada pelos modernos se torna responsável pela proliferação de híbridos? Permanecendo no exemplo da bomba a vácuo, o percurso de sua construção exigiu o desenvolvimento de técnicas – de um conjunto de ações e procedimentos – e de equipamentos – máquinas e aparatos científico-tecnológicos –, que, para os modernos, é um processo (apenas) de purificação, em que, à medida que se progride científica e tecnologicamente, os objetos vão se tornando cada vez mais “puramente científicos” até que se retire o último traço “social”.

O que os modernos se esqueceram é que nessa cadeia de eventos ocorrem processos que não são sucessões passivas e mecânicas de leis, dispositivos, códigos, até que se chegue a algo totalmente científico. Esse pensamento pressupõe que o sujeito manipula o objeto que é passivo e nada influencia nas práticas adotadas por ele, no sentido de que o objeto não desloca sua ação, o sujeito está sempre no comando. Nesse cenário, os objetos são meros intermediários que apenas fazem o papel de ponte para o evento posterior acontecer ou até que se chegue a outro ator, mas não os altera.

Porém, essa cadeia, na verdade, mais parece a brincadeira do “telefone sem fio” quando mal executada, o que era no começo se transformou, se modificou, se deslocou para outra coisa que mais nada tem a ver com o que a originou, ou, na melhor das hipóteses, ainda contém alguns traços do original, mas já não podemos dizer que são as mesmas do início. É esse movimento de transformações dos eventos ou dos atores que Latour chama de mediação

A mediação, segundo o filósofo, é realizada por meio dos processos de tradução, ou seja, no momento de interpretação de códigos e leis, por exemplo, há transformações nos seus sentidos em razão de uma influência mútua entre humanos e não humanos. Assim, o resultado final é uma combinação singular de associações feitas por ambos, a mistura de humanos e não humanos, proibida pela Constituição moderna, e que, por outro lado, é o que ela mais tem proliferado às custas da ilusão da purificação.

Na perspectiva da mediação, podemos perceber que os não humanos também agem, também deslocam outros atores que formam as suas redes, não se comportam como intermediários (passivos, mudos), mas, sim, como atores ou actantes³. Ainda utilizando a metáfora de Latour da encenação, podemos dizer que os não humanos entram em cena e agora também podem fazer o papel de protagonistas com propostas de salários equiparados aos dos humanos. Eles sempre estiveram envolvidos na produção, nos bastidores, mas agora em cena, é possível observar sua atuação. Se forem maus atores, sua atuação não será tão relevante e não se ouvirá muito falar deles, mas se se destacarem, serão reconhecidos e até eternizados.

É o que os sociólogos das associações pedem que façamos, que, ao contarmos uma história, levemos em consideração tanto a atuação dos sujeitos, quanto dos objetos, sem partir de um peso assimétrico pré-estabelecido, em que o do sujeito é sempre maior que o dos não humanos. As próprias associações dirão o quão simétricas ou assimétricas são, não cabendo aos sujeitos negligenciar a atuação dos quase-objetos de antemão. 

Agora, embarcamos no trem rumo à não modernidade com a proposta de Latour de darmos a devida atenção aos quase-objetos quanto ao seu potencial de deslocar e transformar outros atores e/ou eventos.

A não modernidade: sente na janela e aproveite a vista!

Que mundo é este que nos obriga a levar em conta, ao mesmo tempo e de uma só vez, a natureza das coisas, as técnicas, as ciências, os seres ficcionais, as economias e os inconscientes? É justamente nosso mundo (LATOUR, 1994, p. 127).

Ao adentrarmos terras não modernas, os polos natureza e sociedade, humanos e não humanos se desfazem, e a desordem, típica do nosso mundo, começa a aparecer. Já não precisamos mais enxergá-lo como (pequenas) totalidades, com fronteiras bem delineadas. As fronteiras nos impedem de entender o mundo como ele é e do que é feito porque funcionam como barreiras, por isso o que Latour propõe é que levemos em consideração toda a complexidade, misturas e associações que o caracterizam.

A tentativa de compreender essa complexidade, por sua vez, exige de nós uma mudança ontológica, ou seja, na forma de pensar sobre quais são os entes que compõem nosso mundo e o fazem se movimentar, que o tornam vivo. Em uma relação assimétrica, os humanos ocupam este papel e os quase-objetos, tão presentes em nossas vidas, se tornam invisíveis, como se não fossem (nunca) responsáveis pela formação de conexões que configuram a sociedade, ou melhor, a rede sociotécnica. Nesse sentido, quando pensamos nos quase-objetos e em um mundo permeado por eles, mas que, ao mesmo tempo, os cala, não parece coerente (nem justo) o modo como temos tratado nossos coabitantes.

Assim, se quisermos compreender a “essência das coisas”, não podemos partir somente do processo de purificação como os modernos, precisamos olhar para as trajetórias que os quase-objetos traçam na rede por meio de processos de mediação. Agora, na não modernidade, chegou o momento destes híbridos serem atores reconhecidos e “fazedores” de história. Com o muro da modernidade derrubado, agora podemos transitar calmamente e aproveitar o passeio. E, longe dos polos (natureza/sociedade; humanos/não humanos), podemos encontrar um lugar para estes quase-objetos contarem sua história. 

A proposta de Latour para um mundo não moderno pede que nos atentemos para as trajetórias dos atores e não para o seu início ou fim da caminhada, pois “Tudo acontece no meio, tudo transita entre as duas, tudo ocorre por mediação, por tradução e por redes, mas este lugar não existe, não ocorre. É o impensado, o impensável dos modernos” (LATOUR, 1994, p. 43). Portanto, o meio, a trajetória, o caminho é o que nos interessa e não os extremos. Os processos de formação das redes, isto é, o caminho construído pelos atores e que formam diferentes conexões, têm muito mais a nos dizer do que a tentativa de purificação de quase-objetos, a fim de se chegar a uma verdade inquestionável ou a um produto que seja “puramente natural” ou “puramente social”.

Por outro lado, os rastros deixados pelas ações dos atores vão movimentando a rede no sentido de deslocar sentidos, e dessa forma, a rede pode ser entendida a partir da superposição das trajetórias que são traçadas nela. Um ponto fundamental na maneira simétrica latouriana de encarar as entidades que compõem a rede é considerar que o deslocamento dos sentidos é também causado por quase-objetos. Os processos de mediação e tradução, portanto, que transformam sentidos não são realizados apenas pela atuação dos humanos. 

O que podemos dizer dessa breve viagem a um futuro não moderno inspirado em Bruno Latour é que a não modernidade pode nos proporcionar formas diferentes de contemplar as mesmas paisagens.

As anotações do diário de bordo

Então, de tudo isso que foi discutido, o que fica para nós? O que fica para o GECCE depois da viagem? Considerando que se trata de um grupo que investiga as práticas científicas buscando seus entrelaçamentos com as questões de outra natureza, os pressupostos de Latour acerca da modernidade nos incitam a refletir sobre a maneira como encaramos nossos objetos de estudo.

O que antes era considerado trivial nas investigações, pode ser revisitado e entendido de outras formas. Os quase-objetos, agora, podem ser reconhecidos e ter sua atuação analisada. Os traços deixados por esses quase-objetos, por sua vez, podem nos ajudar a compreender como os eventos acontecem, sem a limitação das dicotomias e fronteiras (natureza/social; humano/não humano/ciência/sociedade).

Nosso olhar desloca-se, então, para questões relativas ao “como” e não aos “porquês”. As mediações são colocadas em foco em detrimento dos extremos e resultados finais, e quase tudo pode ser levado em consideração; é preciso deixar que os atores digam o que é relevante ou não, o que está conectado ou não. Na medida em que seguimos esses atores e (re)traçamos o caminho junto a eles, podemos compreender de forma mais realista como as associações que formam o nosso mundo se conectam e formam a teia que chamamos de realidade.

Referência


LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.


4O termo quase ciências que dá nome à revista, assim como o termo que a inspirou, quase-objetos, designam entidades que são híbridas e não pertencem a uma esfera ou a outra, mas são formadas pela mistura heterogênea de associações.

5Na perspectiva latouriana, é a reunião de associações entre humanos, não humanos e híbridos realizada por meio de agenciamentos.

6O termo, segundo Latour, já foi abandonado por insinuar a presença de opostos. Os termos “equilibrada” ou “equitável” seriam mais convenientes atualmente.

Leia também

Conservadorismo, Credibilidade Científica e Necropolítica: que fazer?

Introdução Começamos a reunião de hoje discutindo aspectos políticos da Universidade. Existe uma onda ultraconservadora que veio crescendo nas últimas décadas e parece ter atingido seu ápice a partir de 2018. Não existem fronteiras reais na Sociedade. Somos levados a pensar que um professor-pesquisador de estatística experimental nada tem a ver com as decisões políticas […]


Os “bastidores” da pesquisa científica: Inúmeras possibilidades.

Introdução Em meio ao calor de novembro, no ano de 2021, o sol raiando às 5:20 da matina, acordei para realizar minhas tarefas e poder chegar ao encontro do Grupo dos Estudos Culturais das Ciências e das Educações, carinhosamente, GECCE, com a mente limpa e sem preocupações. Às 8:30, estava lá conversando com nosso mentor […]


“Em que areias movediças nos atolamos em conjunto, adversários activos e espectadores perigosos?”

Introdução “Dois inimigos brandem os seus varapaus, em luta sobre as areias movediças. Atento às tácticas mútuas, cada qual responde golpe a golpe e replica com uma esquiva. Fora do cenário […], observamos […] a simetria dos gestos ao longo do tempo: que espetáculo magnífico e banal” (SERRES, [1990], p. 11). Essa descrição do quadro […]


Eu, o GECCE e o DIÁLOGO sobre a Ciência, a Cultura e o Tempo.

Eu e o GECCE Sou cidadão moçambicano, formado em Educação/Ensino, tanto ao nível do mestrado como também ao nível da Licenciatura, gosto de ensinar e de aprender, tanto que acabei parando no GECCE com “os pés descalços”; foi um desafio e continua sendo. Ouvi falar pela primeira vez sobre o grupo com o seu coordenador, […]