Retornando à base

Por Ana Carolina Hyrycena


atualizado 3 anos atrás


Introdução

A estrela desta manhã de quarta-feira (18 de agosto de 2021) foi a obra Gênese e desenvolvimento de um fato científico, de Ludwik Fleck. Na semana anterior, já trabalhamos com uma parte dessa obra, então esse escrutínio traz alguns pontos da discussão anterior que foram recuperados ao longo da manhã e também aquilo que evidenciamos a partir da leitura dos capítulos 2, 3 e 4, respectivamente intitulados Consequências para a teoria do conhecimento da história apresentada de um conceito, Sobre a reação de Wassermann e sua descoberta, Aspectos epistemológicos da história da reação de Wassermann.

A leitura de Fleck nos ajuda a retomar uma perspectiva que deu início às discussões de nosso grupo de estudos, dentro dos estudos de ciências, uma vez que atualmente o grupo está bastante diversificado e se estende para muitas áreas. As discussões de mídia, por exemplo, ganharam um espaço relativamente importante dentro do grupo e alguns autores que não escrevem diretamente sobre ciências acabaram assumindo também posições importantes para nós, o que vai nos deslocando daquela trajetória inicial.

No entanto, não pense que esse desvio nos é incômodo, muito pelo contrário. Mas, com a chegada de novos integrantes ao grupo, parece-nos interessante recuperar um pouco as leituras que tratam temas e assuntos ligados à ciência que retomam aspectos que estão na base de nossos interesses, inclusive como formação profissional, porque nossa carreira acadêmica está articulada a essas questões da ciência (Química, Física, Biologia).

Ao longo da manhã, os colegas foram expondo os pontos do texto que lhes foram impactantes, trazendo conceitos-chave da obra, destacando fragmentos fundamentais para entender o pensamento de Fleck e alguns conceitos como estilo de pensamento, coletivo de pensamento, círculos exotéricos e esotéricos, dentre outras questões.

Inicialmente destacou-se a crítica trazida pelo autor, a ideia de que o desenvolvimento dos fatos científicos estivesse dependente de uma relação unilateral entre um sujeito dominante e um mundo passivo, sendo essa uma crítica revolucionária trazida por Fleck já em 1935, posto que outros autores só vieram a discutir essa questão nos anos 50.

Para o autor, o conhecimento é visto como um processo resultante de uma atividade social, não como um processo individual. 

Os pensamentos circulam de indivíduo a indivíduo, sempre com alguma modificação, pois outros indivíduos fazem outras associações. A rigor, o receptor nunca entende um pensamento da maneira como o emissor quer que seja entendido. Após uma série dessas peregrinações, não sobra praticamente nada do conteúdo original. De quem é o pensamento que continua circulando? Nada mais é do que um pensamento coletivo, um pensamento que não pertence a nenhum indivíduo (FLECK, 2010, p. 85).

A origem do pensamento de um indivíduo não está nele, mas no meio social em que “vive, na atmosfera social na qual respira, e ele não tem como pensar de outra maneira a não ser daquela que resulta necessariamente das influências do meio social que se concentram no seu cérebro” (FLECK, 2010, p. 90). Toda e qualquer ideia é um construto histórico e social.

Nessa perspectiva, o autor utiliza o termo coletivo de pensamento para designar uma comunidade de pessoas que trocam pensamentos/ideias ou que influenciam reciprocamente os pensamentos, e o termo estilo de pensamento, que designa os pressupostos de pensamento sobre os quais o coletivo constrói seu edifício de saber. Cada uma das pessoas que compõem um coletivo de pensamento é tida como uma portadora do desenvolvimento histórico de uma área de pensamento, de um determinado estado do saber e da cultura, ou seja, de um estilo específico de pensamento.

Assim, compreendemos que dentro de cada coletivo de pensamento, de cada comunidade, surgem fugas a um estilo de pensamento, isto é, não existe apenas um estilo de pensamento. Os estilos são fluidos e dinâmicos, passam por um fortalecimento social e são desenvolvidos através de gerações. Mas alguma coisa de cada estilo de pensamento sempre permanece entre os diferentes estilos, não havendo uma impermeabilidade entre eles, mas sim uma dificuldade de comunicação entre dois diferentes paradigmas, o que Fleck denomina de incomensurabilidade.

Nesse sentido, um coletivo de pensamento não é frouxo, mas seus conceitos se transportam para todo lugar, há um fluxo de pensamentos entre diferentes coletivos, as ideias acabam sofrendo algumas modificações para que sejam aceitas por outro coletivo de pensamento. Os estilos de pensamento são construtos (sociais e históricos) então não há como limitá-los. Isso nos auxilia de um ponto de vista metodológico, colocando fim à pretensão de encontrar a essência das coisas ou de rastrear tudo sobre um determinado assunto, porque isso se torna algo impossível sob uma perspectiva prática.

Nunca um fato é completamente independente de outros: ou se manifestam como um conjunto mais ou menos coeso do sinal particular, ou como sistema do conhecimento que obedece a leis próprias. Por isso, cada fato repercute retroativamente em outros, e cada mudança, cada descoberta exercem um efeito em um campo que, na verdade, não tem limites: um saber desenvolvido, elaborado na forma de um sistema harmonioso, possui a característica de cada fato novo alterar todos os anteriores, por menor que seja essa alteração. Nesse caso, cada descoberta é, na verdade, a recriação do mundo inteiro de um coletivo de pensamento (FLECK, 2010, p. 153).

É aí que entra um conceito fundamental para a compreensão das relações de poder na ciência, a coerção, principalmente quando se fala em estilo de pensamento, porque para Fleck o estilo de pensamento é um tipo de coerção que pode delimitar o modo de pensar dos sujeitos, ocasionando a exclusão ou a criminalização daqueles que não participam da atmosfera coletiva. Deste modo, somente quando a coerção exercida no pensamento se desestabiliza, graças ao tráfego intercoletivo de pensamentos, é que se abre o caminho para novas “descobertas” científicas.

Outro ponto discutido durante a manhã foi o aprendizado proporcionado pelos erros e insucessos científicos à medida que são eles parte importante da construção de um fato científico, porque muitas vezes aprendemos mais analisando os erros do que os acertos. Além disso, um fato/a verdade pode ser móvel, mas ele/ela não emerge instantaneamente, é o produto final de processos científicos. A verdade é um “acontecimento no corte longitudinal no contexto do momento: coerção do pensamento conforme ao estilo” (FLECK, 2010, p.151).

Se assumirmos por fato científico apenas aquilo que é firme, imutável e comprovado, ele existirá somente na ciência dos manuais, somente em um círculo esotérico de ciência, praticada por um coletivo de pensamento bem restrito. À vista disso, é importante considerar a emergência das diferenças, das ideias menos acabadas. Como exemplo disso, podemos considerar as divergências da química coloidal em relação à química clássica, que, durante muito tempo, foram ignoradas ou buscou-se meios de purificá-las, mesmo sendo elas mais frequentes na natureza.

Assim, é preciso fazer um esforço para enxergar o que está além daquilo que já é internalizado pela ciência, pois percebemos que temos uma tendência a uma autorreferência à própria ciência, a dar exemplos internalistas, porque não conhecemos exemplos para além disso. Fleck conecta a reação de Wassermann a questões que entram na teia cultural, religiosa, social. Sempre temos algo a aprender quando avançamos para outras áreas. É preciso voltar o olhar para o modo como a química se alastra por aí e se mistura com a estética, a beleza, a sensualidade ou a saúde. As ciências persistem porque os estilos de pensamento não são estáveis, e um conceito fica mais forte na medida em que ele se vasculariza pela teia social. Assim, quanto mais agenciamentos, vascularizações, interações ele fizer, mais forte, produtivo, inclusivo, dialogicisado ele será. 

Referência
FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.

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