Jornada IV – Polegarzinha: uma nova forma de viver em harmonia, de pensar as instituições, de ser e de saber

Por Marcella Cristyanne Comar Gresczysczyn & Valter Cardoso da Silva


atualizado 3 anos atrás


Introdução

Quem são os sujeitos imersos nos sistemas de educação da modernidade tardia, regido por diversas tecnologias da informação e artefatos comunicativos? Como se formam os sujeitos que têm informações de toda a aldeia global ao alcance dos dedos e literalmente na palma da mão? São questões como essas que o filósofo e matemático Michel Serres1 aborda em seu último texto. O livro2 se vale de poderosa reflexão filosófica para pôr seus leitores a pensar sobre as aventuras dos “Pequenos Polegares”, jovens ainda em formação que usam seus aparelhos celulares e outras ferramentas tecnológicas para se comunicar e saber do mundo em que habitam.

O autor e pensador francês aborda possibilidades do exercício de pensar o papel da tecnologia na construção de novas sociabilidades e na atualização de interrogações que constituem a condição humana. Criativo como sempre, constrói seus argumentos tomando elementos tanto do passado como do presente do que chamamos educação – ao mesmo tempo em que aponta desafios futuros neste campo frente a fenômenos como a intensa descontinuidade do espaço geográfico, a fragmentação do tempo como continuidade linear e as radicais mudanças ocorridas nos processos educativos, agora pensados mais como espiral e menos como acumulação.

Construído, segundo o próprio autor, a partir de suas experiências e contato com seus jovens netos, mas também temperado pelos anos no exercício do magistério, Serres parte da perspectiva de que os jovens estudantes de que fala “(…) não habitam mais a mesma Terra, não têm mais a mesma relação com o mundo” (SERRES, 2015, p. 13) que as pessoas de gerações anteriores, seja em termos das condições materiais com as quais têm de lidar para garantir sua sobrevivência, seja em termos de sua experiência existencial em um mundo globalizado onde circulação, aproximação e interação se tornaram irrestritas.

Embora os deslocamentos e as mudanças de espaço não sejam privilégios do século XXI, o autor reflete que, contemporaneamente, as viagens físicas ou virtuais acabaram por “(…) transformar a percepção do ambiente em que se vive” (SERRES, 2015, p. 73). E tal fenômeno também tem relação com a forma como se desenvolvem as práticas de conhecimento, pois, se no passado o livro era o referente espacial onde se localizava o saber, agora uma série de novas tecnologias forçam um deslocamento que dilui este formato e apresenta possibilidades fluidas, fugidias e esparsas: informações surgem com um simples toque em uma tela – eis a volta da cognição por meio de procedimentos determinados, em seu formato procedural, como afirma Serres.

Se esta nova concepção de espaço, com novas e peculiares curvaturas, é explorada nesse trabalho, um outro sentido é apresentado pelo autor com relação ao tempo. Este se apresenta de forma não linear, onde a mecanicidade inerente à produção fabril é abandonada em benefício de uma formulação que, se por um lado não chega a prescindir de medidas temporais, tem como marca a força das experiências vividas pelos novos “Pequenos Polegares”. Para eles, a ordem é uma prisão, e sua preferência recai sobre a desordem, que “[…] areja, como em um aparelho que apresenta uma folga. E essa folga possibilita a invenção […]” (SERRES, 2015, p. 53) – movimento e descoberta criativa imprimem ao tempo nova taxinomia valorativa, pois, por meio da tecnologia, essa nova juventude “[…] considera ter a própria cabeça nas mãos e à sua frente” (SERRES, 2015, p. 35).

Em “Polegarzinha”, Serres propõe o desafio de pensar a educação e os processos formativos no mundo contemporâneo marcado pela interação tecnológica. Por este prisma, surgem feixes luminescentes que permitem o vislumbre de uma realidade em constante transformação. Os debates e discussões postos pelo autor colocam em xeque os caminhos formativos que têm sido contemporaneamente ofertados à juventude. Infelizmente, em boa parte das vezes, eles ainda não estão à altura do ambicioso subtítulo proposto pelo autor: uma nova forma de viver em harmonia, de pensar as instituições, de ser e de saber.

Notas

1 – Falecido em 2019, teve essa obra de 2012 editada no Brasil em 2013 e 2015.

2 – Seu título poderia, não fosse por seu longo subtítulo, levar a obra para estantes de ficção infantojuvenil.

Referências 

SERRES, Michel. Polegarzinha: uma nova forma de viver em harmonia, de pensar as instituições, de ser e de saber. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.

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