Entre Sonhos e O contrato natural: Um diálogo entre as obras de Akira Kurosawa e Michel Serres
Por Valter Cardoso
atualizado 3 anos atrás
Introdução
Houve quem afirmasse que o cinema surge de uma síntese entre dimensões opostas: o repouso e o movimento. Por um lado, seria herdeiro da escultura e da pintura; por outro, do teatro e do balé. A sétima arte, principalmente as grandes produções americanas, também foi acusada de estar a meio caminho entre o puro deleite estético e a descarada exploração comercial. Jogo de luz e sombra, ilusão que seduz razão e sensibilidade, o cinema parece ter o hibridismo como marca de sua expressão artística.
Neste sentido, o filme Sonhos1 (Akira Kurosawa, 1990) parece assumir este caráter de derivação e espaço entre polos opostos. Esta obra, que traz em seu bojo elementos da milenar tradição cultural japonesa mesclada a prementes questões que angustiavam a sociedade capitalista e tecnológica no final do século XX, apresenta um leque de possibilidades interpretativas – a começar pelo título (Sonhos/Dreams/Yume), que sugere leituras psicanalíticas.

Neste espaço, optou-se por uma tentativa de aproximá-la das discussões propostas por Michel Serres em seu texto “O contrato natural”2. De início, pode-se tomar a própria estrutura da obra: como sugere seu título, o filme não se apresenta como um todo linear, preso à estrutura narrativa, com início meio e fim. Ao contrário, é formado por oito histórias, que, como sonhos que assolam um sono agitado, não têm um plano de continuidade.
Embora “O contrato natural” tenha sido forjado de forma bem mais coesa, muitas vezes tangencia o aforisma, desapegado de ideais cartesianos de clareza e objetividade. Em vários momentos, Kurosawa se vale de elementos retirados de antigas lendas japonesas para falar de aflições que assombram o mundo moderno. Nas duas primeiras parábolas (?), o ser humano é apresentado como crianças que, movidas pela curiosidade (científica?) ou interesses pessoais (de ordem econômica?), de alguma forma afrontaram a ordem cósmica. O equilíbrio só será restabelecido a um certo custo. Esse mito fundador é muito presente na obra de Serres. Aliás, uma das ideias mais potentes d’O contrato natural é a de que o ser humano teria de abandonar a relação de posse que tem com planeta, passando a imaginá-lo como uma totalidade à qual pertence.

Em ambas as obras, vindas a público no mesmo ano, a preocupação com a Natureza é onipresente. No conto “A nevasca”, vê-se um claro exemplo de como o mundo pode ser tomado como hostil, inimigo a ser vencido. Porém, vencer o mundo ou se deixar vencer por ele não são opções válidas. “Estamos no caminho certo?” A questão enunciada por um dos personagens poderia ser o fio de Ariadne a guiar a leitura de Serres. Com base na dinâmica do conto “O túnel”, existe muito a ser considerado antes de uma possível resposta. Afinal, numa corruptela de certo adágio cristão, a historieta nos leva a pensar que o preço da guerra é a morte3: como resultado, tem-se mortos que sonham que ainda estão vivos.
Assim como Serres poderia refletir que, incapazes de mudar a rota de colisão com o desastre natural, vivos sonham que poderão escapar à morte. O que os pesadelos “Monte Fuji em vermelho” e “O demônio que chora” mostram ser impossível: voragem capitalista e corrida armamentista, para Kurosawa (e pode-se dizer que também para Serres), terão como consequência o apocalipse.
As reflexões éticas e políticas postas pelo filme poderiam ser pensadas como datadas. Mas, à luz das reflexões filosóficas da obra de Serres, bem como dos acontecimentos belicistas do início de 2022, parecem se mostrar bem atuais. Mas nem tudo no filme de Kurosawa é distopia ou culpa onírica. A fábula “Corvos” oferece a mais bela fotografia de todo o filme. Ao ser convidado a adentrar o universo de Van Gogh, o espectador é levado a pensar a arte como possibilidade de interiorizar elementos que estão para além da capacidade racional do humano – uma outra proposta de relação com o mundo. Porém, há que se cuidar para que a necessidade de enquadramento e representação não tenha o mesmo afã de posse e controle que se vê, por vezes, na ciência e filosofia – o que lhe roubaria muito de suas possibilidades expressivas.
O último conto, “O povoado dos moinhos”, permite que se reflita acerca do sentido do aparato técnico científico do mundo moderno. Mais ainda, por meio dele é possível o questionamento acerca do seu custo. É claro que, quando comparada com as sociedades tradicionais, a modernidade ganha em termos de praticidade e tempo despendido na produção do necessário à sobrevivência humana, mas perde em termos da experiência de sua historicidade, tornando pobre o sentido atribuído e a forma como simboliza sua existência. Tal comunidade “O povoado dos moinhos” não precisa celebrar “O contrato natural”, porque já o vivencia de forma inscrita, na medida em que tem seus ritmos ditados pelos ciclos naturais e se sente parte do todo planetário.
Outras similitudes poderiam ser traçadas entre as duas obras. As historietas têm seus personagens sempre em deslocamento e derivação – são quase sempre viajantes, física ou simbolicamente. As situações postas estão sempre na fronteira, na margem de mundos que nem sempre se tocam. Seus personagens são marcados pela mestiçagem e pelo hibridismo. E até mesmo a forma como Kurosawa finaliza seus devaneios apresenta a ideia de que, por piores que ações humanas tenham sido até o momento, o devir ainda está em aberto, um vir a ser sempre ainda em construção. Elementos que constituem uma marca do pensamento de Michel Serres.
Notas
1 – O filme nas versões dublada e legendada pode ser encontrado em diversos blogs e páginas da internet, assim como na plataforma do Youtube (https://www.youtube.com/watch?v=kP7uzkXEmyw). Acesso em: 07 março 2022.
2 – Obra analisada na seção Escrutínios desta revista.
3 – O catecismo católico ensina que o preço do pecado é a morte.
Referências
SERRES, Michel. O contrato natural. Lisboa: Instituto Piaget, [1990].