(RE)PENSAR OS PROCESSOS METODOLÓGICOS DE PESQUISA: REVISITANDO MINHA DISSERTAÇÃO E TESE

Por Angélica Cristina Rivelini-Silva


atualizado 3 anos atrás


Introdução

Ao ser convidada pelo Grupo de Estudos Culturais da Ciência e Educação (GECEE), do qual fiz e ainda me sinto parte, para preparar um artigo com informações sobre a metodologia utilizada em minhas pesquisas durante o mestrado e doutorado, encarei como uma oportunidade de repensar sobre os caminhos metodológicos que segui. E, nesse movimento de parar e olhar para um processo finalizado, tomo a liberdade de apontar algumas vantagens e desafios que enfrentei.

Vamos começar com uma comparação. Quando decidimos fazer uma viagem, precisamos escolher um itinerário, os meios de transporte, os companheiros, os alojamentos, planejar os gastos e arrumar a mala. Mesmo que os destinos sejam alterados durante a viagem, temos de antemão uma direção a seguir. E, quando retornamos dessa viagem, trazemos diversas lembranças, souvenirs, fotos, recordações, filmagens, entre outras coisas. O que quero dizer com isso é sobre a impossibilidade de produzir os caminhos metodológicos e as análises de forma isenta. Mas, o que a analogia com as viagens pode ajudar nas discussões sobre o processo de investigar e de se tornar pesquisador? 

Sabemos que o processo de construção metodológica dos trabalhos pautados nos Estudos Culturais das Ciências se apresenta como um momento de insegurança e dúvidas, especialmente pela gama de possibilidades apresentadas e, ao mesmo tempo, o receio em atender as demandas e exigências institucionais relacionadas à produção e entrega de um trabalho acadêmico.

Assim, como nos apresenta Santos (2005), “é pela experiência de ter estado lá e de ter escrito aqui” (p.75), sendo como o campo de nossas pesquisas (escola, universidade e outros espaços educacionais), cedido para que, como pesquisadores/turistas equipados com nossos cadernos de registros, gravadores e filmadoras (celulares), circulemos e participemos das atividades e peculiaridades daquele espaço para, então, voltarmos aos nossos computadores, escrevermos e analisarmos cada recordação trazida como evidência de um processo de pesquisa/viagem.

Meyer e Soares (2005) nos lembram que “os desafios colocados para aqueles e aquelas que se propõem a fazer pesquisas em abordagens pós-estruturalistas envolvem, pois, essa disposição de operar com limites e dúvidas, com conflitos e divergências, e de resistir à tentação de formular sínteses conclusivas” (p. 40), sínteses essas que, muitas vezes, fazemos antes mesmo de iniciarmos nossas pesquisas de campo. Precisamos, sim, conforme os autores, “admitir a provisoriedade do saber e a coexistência de diversas verdades que operam e se articulam em campos de poder-saber” (p. 40), para então termos condições de aceitar que as “verdades com as quais operamos são construídas, social e culturalmente” (p. 40). 

Para relatar um pouco sobre as minhas andanças metodológicas e os movimentos que empreguei para capturar e analisar as ‘verdades’ do campo de pesquisa escolhido, tanto no mestrado quanto no doutorado, apresento nas seções seguintes a descrição metodológica da minha dissertação e, na sequência, da tese.

Aventuras da etnógrafa turista

A metodologia que me aconteceu se inspira naquelas utilizadas em abordagens etnográficas, mas sem nenhum compromisso preestabelecido de fazer os registros e narrativas detalhadas dos estudos antropológicos tradicionais. Foi nesse sentido que adotei a metáfora de uma viagem, assim como Santos (2005), que desenvolveu sua metodologia de pesquisa tomando emprestado o nome de etnógrafo-turista de Bruner (1997). O método é parte constitutiva da representação investigativa e “se constitui no próprio andar da pesquisa” (McGUIGAN, 1997 apud SANTOS, 2005, p. 21).

Esse aspecto se dá quando o processo de ida a campo evidencia algumas referências turísticas presentes durante as visitas, que mostram o processo de excursão do pesquisador e sua inserção no lugar, pressupondo um projeto de condução, roteiro e registro. São evidentes as diferenças entre um etnógrafo e um turista, como os objetivos, modos de ver e sentir muito distantes, mas que se aproximam, porque ambos pressupõem uma viagem, um deslocamento e um desejo de conhecer estilos, modos de vida e paisagens diferentes (SANTOS, 2005).

Para a pesquisa que empreendi durante o mestrado, algo parecido aconteceu. Foi necessário estar lá, em um colégio estadual no município de Apucarana, no estado do Paraná, participar de todas as atividades de uma turma do Curso Técnico em Química, que envolvia estar nos planejamentos de aulas, nas reuniões de professores e alunos, nas aulas teóricas e práticas, interagir com as pessoas do espaço escolar, lanchar com os professores e alunos, tirar fotos, gravar conversas, enfim, além de observar, participar também, um pouco do que configura o dia a dia da escola e dos alunos do curso técnico, para depois voltar ao meu computador e escrever.

No trabalho de recompor o que vi/vivi, acabo por interpretar o objeto de investigação aos olhos de uma etnógrafa-turista, que não oculta suas dificuldades, ao concordar com Santos (2005), quando afirma que a narrativa que fazemos “trata-se, sobretudo, de uma re-montagem (de um recordar a viagem) que não se coloca como um modelo de pesquisa, mas que pretende problematizar a sua própria constituição enquanto metodologia de trabalho, expondo suas colagens e fraturas” (p. 20).

Sendo assim, aquilo que escrevi, descrevi e analisei fez parte de um modo de olhar para a escola que foi se configurando durante a viagem/pesquisa. Vale ressaltar que fui fortemente influenciada por uma posição política ao assumir os Estudos Culturais da Ciência como fonte de inspiração e trabalho. Conforme Veiga-Neto (1996), “são as nossas práticas e os olhares que colocamos sobre as coisas que as criam como elementos pensáveis, que as fazem sujeitos e objetos de enunciação, ou as certezas nas quais confiar, ou os problemas a resolver” (p. 15), e este olhar e escrita foram atravessados por minha formação acadêmica e principalmente pelo tempo que trabalhei como professora de química; mesmo que mais bem guardados, acabei por levá-los na bagagem durante a pesquisa.

E o ‘peso’ dessa bagagem dificultou o que inicialmente me parecia simples, pois fui surpreendida diversas vezes pela ausência total de dados a serem registrados/colhidos. Imaginava que seria como colher lírios no campo, mas o campo, ele mesmo, não estava lá e nada de dados, ao menos no primeiro momento. Minha proximidade com a escola e a rotina lá empreendida dificultaram no começo dos registros a identificar os momentos de negociação e construção de significados, pois tudo que acontecia na escola me parecia muito familiar e rotineiro. Buscando aprimorar os momentos de observação, passei mais tempo no colégio e registrei todas as informações e diálogos a que tinha acesso.

Desse movimento que empreendi, foram emergindo questões de pesquisa que estavam continuamente sendo reinventadas, configuradas, ou seja, (re)surgiam no seu contexto escolar. Não foi nos acontecimentos extraordinários que pude observar a produtividade das relações, mas, sim, nos momentos corriqueiros e cotidianos. Não existia uma prática escolar esperando para ser descoberta e descrita por mim, mas que, conforme descrevia e falava nela/dela, eu a construía enquanto objeto de pesquisa.

Para melhorar os momentos de pesquisa, desenvolvi estratégias de observação, que basicamente se constituíram em vivenciar o cotidiano da turma, procurando participar das diferentes atividades realizadas, pois, em se tratando de pesquisa com inspirações etnográficas, atentei-me às (re)significações, às negociações e às relações que educadores, alunos e demais sujeitos do ambiente escolar dão às formas como as práticas educacionais são vivenciadas.

Mas, apesar de tudo isso, senti-me diversas vezes impotente frente às naturalizações dos discursos proferidos na escola. E, movida por um desejo inicial de compreender o não uso dos laboratórios, optei por acompanhar mais de perto as aulas de Química Industrial que apresentavam grandes possibilidades de aulas em laboratórios. Como uma pista do que observei e registrei, trago um trecho das descrições que estão no meu trabalho de dissertação: 

A escolha desta atividade prática – e não outra – gerava o movimento necessário à demonstração, que permitia aos alunos uma visibilidade do que era dito em aula. E a possibilidade desta visibilidade acobertava tanto a aflição institucional de evasão, quanto o desejo de verdade, ou ainda a comprovação da verdade científica. Iniciando a preparação dos reagentes analíticos, a professora Flávia orienta “Vocês vão colocar a água destilada com a proveta no erlenmeyer, junto com o vinagre. Aí, vocês vão colocar três gotas de fenolftaleína, que é o indicador, lembra que eu expliquei para vocês?” Uma pausa e silêncio, até ela questioná-los: “O que faz a fenolftaleína que é o indicador?” Um coro de alunos responde e mal posso entender o que dizem, porém a que sobressai diz: “Ela vai mudar de cor por causa do ácido”. Ao ouvir esta resposta, a professora brada: “Isso! Na hora que der o ponto de viragem, né? A hora que a reação acontecer, vocês vão ver mudar de cor, né? Se não tiver fenolftaleína, vocês não vão ver acontecer nada”. Volta a questionar os alunos: “E daí? Qual é a cor que vai ficar neste caso?” As respostas alternavam entre “incolor” e “rosa”. A professora intervém: “Não, não! No ácido, ela fica incolor, quando for colocada a base, ela fica rosa. Lembra? Falamos isso na sala” (RIVELINI-SILVA, 2012).

Com o caminhar dessa pesquisa, muitos relatos foram registrados e analisados, as escolhas foram feitas e o resultado apresentado na dissertação. Na sequência, apresento o caminho metodológico desenvolvido para a pesquisa e escrita de minha tese. 

Voltando ao campo, outros caminhos e caminhadas

Retomar a pesquisa de campo, agora no doutorado, foi novamente um desafio e uma busca para entender a construção do espaço discursivo do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). Mas o que me motivou a realizar essa investigação?

Bem, devo dizer que foi uma curiosidade, mas concordando com Foucault (2014), só há uma “espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo” (p. 13). Esse separar-se de si mesmo obrigou-me a pensar o PIBID/AP a partir de uma desconfiança em discursos hegemônicos. Poderia seguir esse caminho para estabelecer o problema e a pergunta de pesquisa, pois me pareceu oportuno pesquisar esse grupo e observar, na sua prática, sua constituição e a construção de suas singularidades, mantidas e reforçadas nas atividades cotidianas. E, ainda, entender como o PIBID ganhava força discursiva no recorrente discurso hegemônico da busca da formação de professores ‘melhores’.

Minhas inquietações eram locais, pois, como ensina Foucault (2013c), não devemos analisar categorias superiores e absortas, mas direcionar o interesse para elementos mais periféricos do sistema, e assim interessarmo-nos pelos locais nos quais o poder está em ação. O ponto em que direcionei meu olhar de pesquisadora não foi a CAPES ou a instituição Universitária como um todo, mas, sim, o subprojeto PIBID/Ap e suas relações, “não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas sujeições que existem e funcionam no interior do corpo social” (Idem, p. 282).

Buscando entender as maneiras que levavam à criação do espaço PIBID/Ap enquanto lugar da formação dos ‘professores melhores’, queria questionar, “melhores que quem ou o quê?” Não, volto a dizer, não procuro qual a estratégia para a formação de professores. Trata-se, ao contrário, de apreender o processo de subjetivar-se PIBID/Ap em suas micro relações nas extremidades, em suas ramificações mais extremas, capilarizadas, ‘a vida que pulsa nas práticas’ PIBIDianas, para apreendê-las em suas formas mais locais, no ponto em que ele se corporifica em técnicas e dispositivos que autorizam e instituem as categorias. 

Trabalhar inspirada em Foucault parece pertinente, uma vez que ele se revela interessado nos estudos relacionados ao espaço, ao espaço-tempo e à história em diversas de suas obras. Essa obsessão justifica- se pelo fato de Foucault afirmar que, por meio desses estudos, ele tenha entendido as relações existentes entre o poder e o saber. E, assim, pode compreender as maneiras pelas quais o saber funciona como um poder e replica seus efeitos ao analisá-las em “termos de regiões, de domínio, de implantação, de deslocamento, de transferência” (FOUCAULT 2013a, p. 251).

Neste contexto, olhei o processo histórico ocorrido com os alunos ao participarem do PIBID, lembrando que um discurso e uma prática recorrente é o da inserção dos estudantes bolsistas no contexto das escolas públicas, sob orientação de um docente da licenciatura e de um professor das escolas parceiras. Nesse cenário de relação Escola x Universidade, há comparações entre o estudado – nas reuniões semanais – e o observado – na prática escolar –, que acaba levando a julgamentos, o que se mostrou produtivo ao permitir olhar para o PIBID enquanto espaço de práticas.

Para que isso aconteça, é preciso entender o discurso constituído de “práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 2012, p. 52). O PIBID Química UTFPR/Apucarana constitui-se enquanto objeto nas práticas construtoras da realidade. As comparações e comentários reforçam a construção desse espaço de subjetivação, pois os bolsistas fabricam-se em seu interior como atuantes do processo do ser/tornar-se PIBIDiano.

Na metodologia de escrita da tese, adotei uma descrição detalhada de todo o processo de trabalho. Esse processo só pode ser apresentado ao final como uma evocação, conforme utilizada por Gottschalk (1998). Ao evocar, pretendi que as atividades presenciadas e as escolhas tomadas fossem reavivadas e constituíssem o texto do trabalho.

Para isso, convidei o leitor de minha tese para uma descrição sem, contudo, tentar convencê-lo da verdade do relato, com apelos às ‘autoridades’ e ‘critérios tradicionais’, mas promover uma compreensão, um reconhecimento, uma identificação de experiências, das emoções, das perspicácias e das formas de comunicação. Utilizei diversas estratégias visando recontar o observado, tais como o uso de metáforas e analogias, reproduzir os diálogos e reconstruir os acontecimentos. A fim de iniciar uma reflexão sobre a inserção no campo de pesquisa, as estratégias estabelecidas para o registro dos dados e a participação no grupo, apoio-me em Foucault, ao dizer que

[…] não tenho um método que aplicaria, do mesmo modo, a domínios diferentes. Ao contrário, diria que é um mesmo campo de objetos, um domínio de objetos que procuro isolar, utilizando instrumentos encontrados ou forjados por mim, no exato momento em que faço minhas pesquisas, mas sem privilegiar de modo algum o problema do método (FOUCAULT, 2003, p. 229).

A produtividade nas pesquisas foucaultianas pode ser atribuída justamente ao abandono de métodos prontos e totalizantes. Uma recusa aos moldes da racionalidade moderna, às metodologias encaradas como alicerces da pesquisa, que seriam capazes de sustentar todo um arcabouço de informações e informantes. Teorias inflexíveis não comportam mais a multiplicidade de informações, maneiras de pensar e modos de vida. O que buscamos nas inspirações metodológicas foucaultianas são, como chamou Corazza (2002), “pontes” que permitam a passagem pelos caminhos falhos e remendados que encontramos no percurso do pesquisar.

Ora, minha opção por Foucault se deve, especialmente, pela riqueza de suas provocações ao escrever. Como dito por ele mesmo, seus livros devem ser como fogos de artifício (2012) ou, então, como caixa de ferramentas (2013d), usados para produzir e que, após, queimem-se, destruam-se. Portanto, seus pensamentos devem ser vistos como indicações, “como linhas pontilhadas” e cabe a nós continuá-las ou modificá-las (2013b, p. 263).

Considerando que a questão da pesquisa foi observar como se deu a construção do espaço a partir das singularidades e as contingências locais do grupo PIBID/Ap, entendo que não é mais papel do pesquisador “[…] dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do ‘saber’, da ‘verdade’, da ‘consciência’, do ‘discurso’” (FOUCAULT, 2013d, p. 132). Com isso, em oposição a uma sistemática que colocaria tudo de forma ordenada em seus lugares, as teorizações devem permitir analisar os mecanismos de poder, buscando suas relações e seus alcances (FOUCAULT, 2003a).

A obra foucaultiana não apresenta métodos que facilitem o trabalho do pesquisador, tampouco o passo a passo do trabalho. Além disso, são teorizações que não permitem a generalização e banem a ideia de uma resposta para “todos” e para “sempre”. Ao adotar a perspectiva “foucaultiana, não devemos partir de conceitos, nem devemos nos preocupar em chegar a conceitos estáveis e seguros em nossas pesquisas” (VEIGA-NETO, 2014, p. 19).

Com isso em mente, retomo a ideia de ‘caixa de ferramentas’,

[…] uma teoria é exatamente como uma caixa de ferramentas. Nada a ver com o significante… É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada (FOUCAULT, 2013d, p. 132).

Entendendo que as escolhas teóricas e metodológicas devem ser úteis para o objeto da pesquisa, passo a apresentar os percalços do caminho investigativo e as técnicas das quais me apropriei e fiz uso durante a pesquisa e escrita do texto. Foi com o trabalho e a obstinação de Foucault em tecer métodos próprios, que hoje podemos contar com dois procedimentos – a arqueologia e a genealogia –, muito úteis, se entendidas como ‘soft metodologias’, inspiração para o trabalho investigativo.

Para minha pesquisa de doutorado, a genealogia foi entendida como a própria prática da pesquisa, isto é, ela não vem para traduzir uma história, ela é a própria história. Ela me permite, enquanto pesquisadora que está lá observando, construir o objeto da pesquisa ao direcionar meu modo de olhar para o grupo PIBID/Ap. Esse olhar, repleto de interesses de uma pesquisadora, vai tecendo as relações, as práticas e o próprio espaço da pesquisa em oposição à ideia de que a prática é uma aplicação da teoria ou uma decorrência dela, e o contrário também, como se a teoria inspirasse a prática.

Assumindo a genealogia foucaultiana como inspiração metodológica, encaro-a como coloca Foucault (2013): “a genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos” (p. 55). Na citação, “a genealogia é cinza”, cinza como um nevoeiro ou uma nuvem de fumaça, que embaça a visão e os sentidos, só permitindo enxergar poucos fragmentos, conforme meu olhar direciona-se e vai pouco a pouco, vendo uma imagem confusa e rebocada, um borrão de fragmentos.

A genealogia exige um olhar atento, demorado para marcar a singularidade dos acontecimentos; requer olhá-los nas minúcias e nas pequenas ações diárias, naquilo que “é tido como não possuindo história” (Idem p. 55). E, ao (re)contá-las, paraliso-as em um momento, como uma foto, e vou atribuindo-lhes uma verdade que “é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder” (FOUCAULT, 2013a, p. 52). Pensando assim, ao descrever o observado na vivência com os bolsistas, uma história/estória é contada, aquela que é possível e observável a certa distância – distanciamento que o papel de pesquisadora me imputou.

E agora? 

Agora, devemos aproveitar todas as possibilidades metodológicas e negociar com elas e o campo de pesquisa os limites e adequações necessários. Agora, precisamos permitir que nosso objeto de estudo ‘fale’, apresente-se, mostre como se constitui, como e com quem negocia para manter-se ativo e presente.

Tudo isso sem esquecer que nossos registros são retratos de nosso modo de olhar, pois somos nós, enquanto pesquisadores, que construímos nossos objetos de pesquisa ao decidirmos o que olhar, registrar, analisar e apresentar.

Então, devemos admitir a coexistência de diversas verdades e aceitar que elas são/estão construídas social e culturalmente. O que nos leva a evitar as sínteses conclusivas e totalitárias que impedem possibilidades para outros olhares.

Para finalizar, boas pesquisas/viagens para todos nós!   

Fontes de inspiração

BRUNER, E. M. The etnographer/tourist in Indonesia. Madrid: UNED, 1996.

CORAZZA, S. M. Labirintos da pesquisa, diante dos ferrolhos. In: COSTA, M. V. Caminhos investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 105-132.

Foucault, M. Poder e Saber. In: FOUCAULT, M. Ditos e escritos IV: Estratégias, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 222-240.

Foucault, M. Poderes e Estratégias. In: FOUCAULT, M. Estratégia Poder-Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003a. p. 241-252.

Foucault, M. Diálogo sobre o poder. In: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos IV: Estratégia Poder-Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

Foucault, M. Soberania e disciplina. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2013. p. 278-295.

Foucault, M. Sobre a Geografia. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2013a. p. 244-261.

Foucault, M. Os intelectuais e o poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2013b. p. 129-142.

Foucault, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2013c. p. 55-86.

Foucault, M. Verdade e Poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2013d.

Foucault, M. História da Sexualidade 2: uso dos prazeres. São Paulo: Paz e terra, 2014.

GOTTSCHALK, S. Sensibilidades pós-Modernas e Possibilidades Etnográficas. In: BANKS, A; BANKS, S. P. Fiction & Social Research: by ice or fire. London: Sage Publications, 1998. 

MEYER, D. E.; SOARES, R. F. R. Corpo, gênero e sexualidade nas práticas escolares: um início de reflexão. In: MEYER, D. E. (org.). Corpo, gênero e sexualidade. Porto Alegre, Mediação, 2005.

SANTOS, L. H. S. Sobre o etnógrafo-turista e seus modos de ser. In: COSTA, M. V.; BUJES, M. I. E. Caminhos investigativos III: riscos e possibilidades de pesquisar nas fronteiras, p. 9-22. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

RIVELINI-SILVA, A. C. “Que nem Químico”: a apropriação dos enunciados científicos nas aulas de química. Dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e educação matemática/UEL. Londrina, 2012.

VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

VEIGA-NETO, A. A ordem das disciplinas. Tese de Doutorado Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRGS. Porto Alegre, 1996.

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