Conservadorismo, Credibilidade Científica e Necropolítica: que fazer?

Por Marllon Moreti de Souza Rosa


atualizado 3 anos atrás


Introdução

Começamos a reunião de hoje discutindo aspectos políticos da Universidade. Existe uma onda ultraconservadora que veio crescendo nas últimas décadas e parece ter atingido seu ápice a partir de 2018. Não existem fronteiras reais na Sociedade. Somos levados a pensar que um professor-pesquisador de estatística experimental nada tem a ver com as decisões políticas tomadas em Brasília ou que essas relações são apenas de caráter externo à Ciência, relacionadas, simplesmente, com financiamento: um governo que não se preocupa com o desenvolvimento científico irá cortar as verbas das universidades e dificultará as pesquisas. É verdade, portanto, que uma análise que se restrinja somente ao financiamento dificilmente captará a complexidade das relações sócio-científicas.

Para além do financiamento, existem disputas discursivas ideológicas, que buscam chancelar e legitimar determinados posicionamentos. Quando a ultradireita conservadora se circunscreve nos espaços científico-educacionais – que vão desde as instituições de coordenação, como o Ministério da Educação, até os espaços menores, como as salas de aula –, novos porta-vozes assumem posições de poder e, consequentemente, chancelam discursos que vão contra perspectivas mais sociais. A ultradireita traz em si o germe do populismo (ZAMORA, 2019), de modo que reivindicam a cultura popular, fazendo acreditar que são estes os detentores dos interesses do povo. Assim, é assegurado, através da distorção ou velamento da realidade, e dos discursos populistas, um lugar de autorização e construção das representações sociais dos sujeitos. Assim, uma vez que a ultradireita assume essas posições de poder, tornam-se produtores dos discursos hegemonicamente aceitos.

Nessa lógica, os diversos atores – professores, intelectuais, pesquisadores, boias-frias etc. – aceitam a “voz autorizada”, que constrói um “poder de impor – e mesmo de inculcar – instrumentos de conhecimento e de expressão” (BOURDIEU, 1989, p. 12). Há, portanto, uma transformação na rede de significados presente no mundo, que vai se entranhando nos grupos sociais a partir das instituições autorizadas. Percebemos, portanto, que essa dicotomia interno-externo em relação à ciência e à sociedade é ilusória. Os atores sociais compõem os círculos científicos, bem como os círculos científicos chancelam os interesses sociais, dialeticamente. Assim, a distinção entre Ciência, Sociedade e Discurso é pouco verossímil, já que todos esses atores se emaranham e se manifestam a partir desses emaranhados sociais – coletivos de pensamento (FLECK, 1994).

Quando nos dispomos a analisar a prática científica, o laboratório, as técnicas e os cientistas, é possível que percebamos que, apesar das normas científicas instituídas historicamente, a preocupação com essas normas, propriamente, são pouco presentes na vida cotidiana dos laboratórios científicos. Dificilmente um cientista escolhe seguir a carreira por admirar a ciência e todos os procedimentos sistemáticos pretendidos pela prática científica. Latour e Woolgar (1997) nos mostram que as motivações científicas estão ligadas à credibilidade científica. Essa credibilidade, por sua vez, está associada “à crença, ao poder e à atividade econômica” (p. 215). Esse crédito pode ser visto sob quatro prismas: como mercadoria de troca; como algo a ser dividido com os atores presentes nos processos; como algo a ser apropriado indevidamente por terceiros; como algo a ser acumulado ou desperdiçado (LATOUR; WOOLGAR, 1997). 

Essa perspectiva nos mostra que a credibilidade científica apresenta características claras de uma moeda. Havendo essa moeda, há também valor, se há valor, há poder e, consequentemente, interesses de conservar esse poder ou tomá-lo para si. Nesse sentido, quando a ultradireita – já detentora do capital, seja clássico ou financeiro – se insere nas instituições acadêmico-científicas da forma como já vem se inserindo, acaba se apropriando também do capital científico. A partir disso, a produção científico-tecnológica atenderá os interesses conservadores, aniquilando as possibilidades de ações que visem a uma justiça social. Quando esses movimentos ultraconservadores que detêm o poder – seja financeiro, seja simbólico – assumem também o poder científico, constrói-se um braço necropolítico forte. A principal característica desse movimento necropolítico é o uso do poder sociopolítico para decidir quem vive e quem morre (MBEMBE, 2021).

Um exemplo clássico da prática necropolítica resultante do ultraconservadorismo que se apropria do capital científico é justamente a pandemia da Covid-19 e a questão da vacina. Nós vislumbramos acadêmicos e intelectuais abrindo mão do conhecimento científico e se deixando levar pelos discursos conservadores: professores, médicos, enfermeiros e acadêmicos que defenderam pseudomedicamentos em detrimento da vacina. Essa problemática se intensifica. Mesmo com a aquisição das vacinas, percebemos a consequência principal da detenção do poder sócio- tecnológico nas mãos conservadoras: morte de milhares de brasileiros por conta de uma propina de 1 dólar por dose de vacina.

Precisamos nos mobilizar, adentrar os laboratórios, os campi universitários, as praças públicas, as escolas básicas, os estádios de futebol, as autoestradas, os semáforos das avenidas e afins para a construção de novos significantes (MILLER, 1997), para que possamos assumir as posições de poder, que nos tornemos porta-vozes de um discurso que se incline às necessidades sociais. Uma luta para a vida demanda força, coragem e mais vidas. Só assim é possível amar e superar a necropolítica.

Referências

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

FLECK, Ludwik. Entstehung und Entwicklung einer wissenschaftlichen Tatsache Einführung in die Lehre vom Denkstil und Denkkollektiv. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1994.

LATOUR, Bruno; WOOLGAR, Steve. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. n-1 edições, 2021.

MILLER, Jacques-Alain. Lacan elucidado. Zahar, 1997.
ZAMORA, Jose Antonio. Nacionalismo autoritário e “Religião da Vida Cotidiana”: o Populismo das Classes Médias em Crise. Revista Caminhos-Revista de Ciências da Religião, v. 17, n. 4, p. 30-53, 2019.

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