Os “bastidores” da pesquisa científica: Inúmeras possibilidades.
Por Milene Graciele de Almeida
atualizado 3 anos atrás
Introdução
Em meio ao calor de novembro, no ano de 2021, o sol raiando às 5:20 da matina, acordei para realizar minhas tarefas e poder chegar ao encontro do Grupo dos Estudos Culturais das Ciências e das Educações, carinhosamente, GECCE, com a mente limpa e sem preocupações. Às 8:30, estava lá conversando com nosso mentor e aguardando os colegas do grupo, que, por sinal, é muito eclético, e é isso que me mantém: as diversas colocações sobre as leituras mais interessantes que já realizei na vida. E até chegarmos à leitura desse dia, traçamos um longo caminho entre inúmeros autores que dedicaram parte das suas vidas realizando pesquisas com variadas contribuições para os estudos sociais e culturais; alguns desses pensadores serão citados no decorrer deste escrutínio. Através deste relato, lhes apresentarei um cenário muito instigante, afinal a obra do dia é “A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos”, do nosso autor querido Bruno Latour, em conjunto com Steve Woolgar, no entanto as discussões são dirigidas apenas aos capítulos 1, 2 e 3. Se você, caro leitor, assim como eu, é curioso, se interessa por esse tema e, principalmente, gosta de uma boa leitura, acompanhe essa produção e fique atento a alguns dos conceitos aqui expostos e possibilidades para futuras pesquisas científicas.
ALERTA: contém spoiler.
No início, o professor sempre nos atenta para a biografia dos autores e ressalta a importância das pesquisas realizadas por eles e conversa sobre o rigor teórico no grupo e possíveis ajustes de referenciais. Detalha as obras de Bruno Latour e destaca essa obra como “o livro de entrada” do autor, que, desta forma, ganhou espaço no cenário internacional. Comenta sobre as importantes contribuições de Michel Serres, do qual Latour retira os conceitos de “rede” e do “quase”, e nos esclareceu as relações estabelecidas em aporte ao nome desta revista. Assim, abriu-se o espaço para ouvir as nossas considerações sobre esta importante obra etnográfica. O que nos atraiu a atenção? Que fatos foram marcados no decorrer do texto? “Fatos”! Estamos produzindo “fatos” científicos em nosso laboratório particular, “a nossa reunião”.
Considerações valiosas
Nosso olhar voltou-se ao ensino superior, onde somos professores, cientistas e, no entanto, as práticas são epistemológicas, não se atenta para a visão dessas práticas, e sim para o ensinar a desenvolver a ciência partindo de uma metodologia hegemônica. Somos orientados, em nível cultural, para uma sociedade frágil em conhecimento dos estudos científicos, por isso, enquanto professores, nos ancoramos na epistemologia e, nesse sentido, consideramos o texto de Latour, que usa a mais clássica etnografia como uma blindagem de desconfiança. Somos voltados para o lugar em que a pesquisa é realizada, o papel de um antropólogo ao escrever o seu discurso e o poder dessas inscrições produzidas dentro de um campo, neste caso, um laboratório, como o mais importante na construção do “fato.” Concluímos que a prática do professor se diferencia da prática científica.
Houve um relato de crise com relação aos capítulos que lemos e a nossa realidade, abordamos as pesquisas no Brasil e nos foi questionado sobre a produção científica dos nossos professores universitários. Estamos somente treinando a prática das ciências ou reproduzimos o que já existe? Como fazer ciência com a falta de verba e com o atual cenário entre as relações políticas e a prática científica? A partir dessas questões, consideramos a descrição realizada em “Documentos e Fatos”, no capítulo 2, que, conforme Latour e Woolgar (1997, p. 73), “o custo de produção de um artigo chegava a 60 mil dólares, em 1975”. Assim, concluímos que a ciência necessita de verbas e financiamentos e voltamos o nosso olhar para a ciência brasileira. O que sabemos de fato sobre a ciência no Brasil? Quais os estudos realizados de maior relevância? Como ela se institui e cria seu espaço científico? E as nossas pesquisas, como as estabelecemos neste cenário? Por que o Brasil não decola em termos de descobertas e produções tecnológicas científicas?
São inúmeras as questões que surgem para este debate, então, em um primeiro momento, voltamos nossas considerações para a importância do investimento nas pesquisas científicas e consideramos o currículo básico da educação, o qual necessita de modificações para a formação de indivíduos que compreendam a importância e o motivo de se realizarem as pesquisas científicas. A partir desta colocação, voltamos a nossa atenção para o capítulo 1 do livro, especificamente sobre “a questão do observador”. Para Latour e Woolgar (1997, p. 25), “Também falam de ciências os professores, os jornalistas, o grande público, só que falam de longe, ou com a incontornável mediação dos cientistas”, pois “para falar de ciências é preciso ser especialista”. Assim, é realizada uma crítica ao ensino de ciências, já que a forma como os conceitos são expostos não demonstra como foi realizada a prática científica para encaminhamento dos “fatos” que são explicados e exemplificados. Em colaboração à fala de um colega, em relação ao ensino de ciências, sabemos a teoria que nos é ensinada, mas não sabemos a realidade de como ela foi produzida e como foram realizados os estudos que encaminharam a ela.
Um outro colega questiona: “O que é ciência?” E eu penso, reflito sobre tudo o que foi falado, mas continuo atenta e construindo minhas próprias concepções. Logo, outro questionamento é direcionado ao grupo, sobre o que achamos em relação aos nossos laboratórios, será que existe a permissividade para a realização das pesquisas ou seria um ambiente restrito?
Assim, as falas do grupo voltaram-se para a realidade da competitividade nas pesquisas, as dificuldades de produzir uma etnografia e retratar a epistemologia dos fatos científicos, as barreiras para adentrar um laboratório e produzir uma pesquisa como a de Latour e Woolgar, pois o laboratório ainda é considerado um “centro sagrado”, e os cientistas que estão neste espaço temem que os “fatos” produzidos sejam revelados, devido à confidencialidade de algumas práticas desenvolvidas. Nesse viés, nos foi questionado: qual a possível falha ao realizar uma etnografia em um laboratório?
Durante toda essa discussão, eu não me enxergo como uma etnógráfa, e sim como uma cientista atuando no “centro sagrado”, produzindo fatos que podem colaborar para um desenvolvimento corporativo. Cito Latour e Woolgar (1997, p. 27) para quem a questão a ser trabalhada para desmistificarmos as práticas científicas é “disciplinar o olhar”, ou seja, um químico pode falar com maior intimidade sobre a sua pesquisa, mas um “observador” pode lançar um olhar verdadeiramente novo sobre a atividade científica, até então não divulgado com abundância em artigos e livros acadêmicos, que são “os bastidores”.
Nossa atenção é voltada para o discurso de um outro colega, que coloca sua impressão sobre a leitura observando que o livro em estudo deveria chamar-se “A vida de laboratório de ponta”. Neste sentido, descreveu os problemas gerados pelos parâmetros técnicos internacionais e a falta de investimento na produção científica; acrescenta, ainda, que o fato de parte do investimento nas pesquisas ser financiada por alguma agência ressalta a desigualdade nas instituições e a restrição na distribuição de informações.
Em uma de suas obras, Latour nos atenta a voltar o olhar para a ciência periférica construindo um discurso hegemônico, é por esse caminho que devemos seguir enquanto grupo dos estudos culturais das ciências e educação. Sobre a provocação do colega, em relação à ciência de ponta dos laboratórios, nos é indicado ler as obras de Knorr-Cetina e “A Esperança de Pandora”, do Bruno Latour, em que é relatado o que se faz no laboratório, onde o filtro lógico é driblado com evidências e um outro olhar. Assim, houve uma mudança de posicionamento no discurso produzido no começo deste relato, quando dizem que nunca houve dúvida que se fazia ciência e sim como ela é realizada. Observei a fala de um cientista que exprime estar indignado com o olhar estagnado, limitado, impedindo a ciência de mobilizar suas práticas. Entre tantas controvérsias produtivas, provocações pontuais e teóricas, buscamos entender, a partir de outras conexões, a produção científica realizada no mundo; então, surge um exemplo inusitado, a comparação da produção científica da China e o atraso do Brasil neste cenário.
Novamente há questões que não querem calar: qual a ciência que fazemos aqui no Brasil? Quais são os movimentos da ciência brasileira, e neles existem trabalhos importantes? Garantimos espaço para a tecnologia? Entre tantas perguntas, observamos que há poucas produções que estudam práticas científicas de grande relevância em nosso país e que necessitamos de estudos estratégicos para realizar pesquisas de impacto.
Outro ponto abordado foi o achismo sobre o ensino de ciência, as diferenças entre fazer ciência e ensinar ciência, problemas de aprendizagem e a disparidade no âmbito educacional. Não podemos nos esquecer do campo de pesquisa voltando o olhar para a nossa realidade e realizando pesquisas sobre o que realmente necessitamos. Atentei-me que, enquanto pesquisadora e cientista, não há espaço para achismo na ciência, mas “fatos”, que serão desenvolvidos e estudados e testados para serem comprovados, e que a linguagem científica utilizada na divulgação das pesquisas é o que direciona o público de alcance. Novamente um capítulo escrito por Latour (1983) nos chama a atenção com o caso de Pasteur e como a sua ciência se transformou em Big-Science. Michel Foucault também foi citado, pois foi abordada a rotulação da ciência e da construção dos fatos científicos, assim o professor citou um trecho da obra “A ordem do Discurso”:
“Eu nunca quis destituir a verdade e dizer que ela não existe, mas, por que nós temos tanta necessidade da verdade?”
Neste âmbito, questionou-se sobre a necessidade da epistemologia na ciência e de onde vem essa necessidade. A química quântica foi usada como exemplo, pois, partindo do uso de computadores, o estudo do entrelaçamento quântico para a criação de supermáquinas, como esse assunto é tratado na universidade? A linguagem das máquinas e evoluções podem superar a mente humana? O que o Brasil produz em termos desse tema? Possuímos a capacidade de desenvolvê-lo? Em verdade, concluímos que, embora cientistas e pesquisadores, não possuímos respostas para estas e muitas outras questões aqui expostas.
Não podemos “aterrar”, diz um colega, pois os espaços de pesquisa necessitam ser diversificados e cita o texto de Latour e Woolgar (1997, p.21), “Em lugar de estudar ciências ‘sancionadas’, cabe estudar as ciências abertas e incertas”, abrindo a possibilidade de fazer ciência de uma forma não canonizada. E, ao concluir esta primeira parte produtiva da reunião, nosso professor nos situa em direção a essa interessante leitura, considerando que Latour apresenta no texto as próprias ciências fechadas e que estas nunca foram tão internalizadas, pois a verdade desse mundo é que nenhuma ciência é sancionada e que ela se vasculariza, no entanto faz-se necessário saber as trilhas de como esse processo é instituído e que a escola não é espaço para simples transmissão de conhecimento, pois nela existe vida.
Aproximação com a temática
Depois de um pequeno intervalo, voltamos trabalhando intensamente e se você gostou do que leu até esse ponto, posso lhe garantir que até o final da leitura você estará por dentro de alguns encaminhamentos importantes para produzir uma pesquisa etnográfica. Assim, escolha uma das questões acima e procure relacionar com a ênfase aos conceitos de “inscrição” aqui apresentados.
Neste cenário, o professor nos atenta para a importância das reflexões dentro da obra, que, devido a sua riqueza, nos encaminha para longe do tema principal, mas sempre buscando aspectos citados pelo autor e relacionando-os em variados contextos. Latour e Woolgar (1997), dão voz aos cientistas, mas será que é fácil adentrar um laboratório para produzir uma pesquisa etnográfica? O que o cientista faz dentro de um laboratório? Como são construídos os “fatos” científicos? Desta forma, Latour propõe um deslocamento de ênfase entre o que se diz e o que se faz. Em “A esperança de pandora”, Latour discute a pesquisa etnográfica no laboratório, partindo do conceito da teoria da ação, que vem de processos da etnografia e processos metodológicos. Assim, questiona-se que, desde a obra de Fleck com uma parada em Serres, este tipo de estudo não nega o realismo, e se é negado é somente o realismo ingênuo.
Na obra “A esperança de pandora”, instituem-se os caminhos, Alfredo Veiga-Neto aborda as fronteiras acadêmicas, pois é possível seguir o conceito de realismo aceitando os ecletismos. O caminho é árduo, surgem negações, Fake News, mas Latour nos alerta que, se quisermos um processo burocrático do qual a multidão faça parte, discussões não estruturadas surgirão; neste sentido, a realidade é um espaço para negociação, poderoso, que depende do tamanho da teia que é programada. A pesquisa etnográfica não é fácil, pois não é estruturada e para alguns passa a impressão de falta de rigorosidade com a metodologia, no entanto os autores aqui citados são os que fornecem as direções a serem assumidas.
A produção internalista de um laboratório pode ser entendida e explicada por um cientista, pois quem melhor que ele para falar sobre a prática científica? Segundo Latour e Woolgar (1997, p. 31, 32 e 33), “a grande diferença entre a etnografia clássica e a das ciências reside no fato de que o campo da primeira se confunde com um território e o da segunda toma a forma de uma rede”; assim, na etnografia das ciências, essas redes podem ser “escritórios, fábricas, hospitais…”, e por que não um laboratório? Existe um limite no laboratório, pois possuímos uma gama contínua de “transformações, de traduções e deslocamentos”, há distinção entre os contextos, e o “laboratório se ocupa de ‘fatos’, não de teorias”. No entanto, a fim de retratar os embates enfrentados para que haja a produção científica e os atores desta rede, somente um etnógrafo das ciências.
Chegamos neste ponto à “inscrição”, onde a produção científica é colocada com a literária, e quanto mais escrevemos e descrevemos essa cadeia, partindo dos atores que nela estão envolvidos, mais rica será a obra produzida. Para maiores conceitos de “inscrição”, nos remetemos ao artigo de Latour “Give Me a Laboratory and I will Raise the World” (1983), focado na análise semiótica e com a mistura da cienciometria e a teoria de rede.
Questionou-se como o conceito de inscrição foi formado em nossa concepção partindo de nossas leituras. Como conectar as relações mais fracas com as noções de “inscrição”? Assim, um colega do grupo cita o texto-alvo da nossa leitura, retratando que os dados produzidos por aparelhos são tratados por “inscrição” e, a partir disto, forma-se uma cadeia de construção dos fatos, e as inscrições são o meio como as verdades são instituídas. Assim, a inscrição é o ato de modificar um “fato”, os “móveis imutáveis” são descritos, o texto é descontruído para a produção do “fato”. A inscrição e as formas como se institui têm a capacidade de tornar o fato mais forte e mais enraizado. Timothy Lenoir é citado, pois estuda a instituição e o equipamento, no entanto não há como instituir um laboratório sem abordar a teia que é estruturada, pois um gráfico não pode ser deslocado, mas o processo pode ser analisado e descrito até o alcance de um método eficaz de produção.
Deste modo, poderíamos dizer que os escritores são simplificadores ou transdutores que transformam os dados gráficos em palavras, simplificando o caminho da interpretação e nos fornecendo um atalho para interpretações? O professor exemplifica um espectrofotômetro, o qual elimina o fator histórico no mínimo possível ao nos fornecer um relatório de análise, no entanto, a partir da inscrição, essa leitura pode ser transformada em artigos, subartigos, livros, apostilas, propagando a química e a vascularizando como um outro objeto, configurando-se como um ponto de passagem obrigatório, que, em um mesmo tempo, fecha e faz uma abertura. Um de nossos colegas cita, Ludwik Fleck e os circuitos da ciência esotérica e exotérica e a cadeia de ação, ressaltando que, embora a ciência seja complexa, funciona sem o processo sociológico, separa-se em micro e macrociências, pois há determinações difíceis de manter. Outro colega argumenta que o sistema se retroalimenta. Assim, o primeiro retoma o que, desde o início da reunião, gostaria de argumentar, que é a Big Science e a ciência com “C”. Um terceiro colega concorda e afirma que o interessante é a forma como essas questões se formam e que, de posse do conhecimento, podemos nos deslocar melhor na rede. O primeiro colega retoma a Stuart Hall e nos atenta para a importância de se conhecer o micro e o macro no âmbito da pesquisa cientíifica, colaborando com a formação de nossos pensamentos.
Ao nos encaminharmos para o fim do nosso encontro, muitos fatores ainda restavam ser discutidos, como os jogos de poder, as hierarquias, as condições financeiras, que podem atuar no processo de exclusão de um pesquisador. Assim, quem pode mais é quem é o mais citado nos referenciais bibliográficos, o que mais se aproxima em capital simbólico e nesse processo a cultura se institui em hierarquias, por isso é importante nos atentarmos aos capítulos finais dessa obra que também irá compor essa seção da revista, partindo do relato de um de meus colegas. Fiquem atentos!
Neste patamar, após essa enriquecedora discussão, o professor nos questiona e eu volto esse questionamento a você, caro leitor: sobre o relativismo de Latour e a inscrição literária, você saberia se posicionar?
Referências
FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
LATOUR, Bruno. Give Me a Laboratory and I will Raise the World. In: KNORR-CETINA, Karin D.; MULKAY, Michael. (ed.) Science Observed: Perspectives on the Social Study of Science. Londres: SAGE, 1983. p. 141-170.
LATOUR, B.; WOOLGAR, S. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Trad. Angela Ramalho Vianna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.