“Em que areias movediças nos atolamos em conjunto, adversários activos e espectadores perigosos?”
Por Valter Cardoso da Silva
atualizado 3 anos atrás
Introdução
“Dois inimigos brandem os seus varapaus, em luta sobre as areias movediças. Atento às tácticas mútuas, cada qual responde golpe a golpe e replica com uma esquiva. Fora do cenário […], observamos […] a simetria dos gestos ao longo do tempo: que espetáculo magnífico e banal” (SERRES, [1990], p. 11). Essa descrição do quadro “Duelo a Garrotazos” de Francisco de Goya abre o livro “O contrato natural”, de Michel Serres. A pintura é uma imagem metafórica que se aplica à forma como o autor pensa a guerra como poderosa força motriz para a ação humana. Se o conjunto dos seus escritos permite depreender o quanto considera problemático o modo como os seres humanos pactuam suas ações coletivas, neste livro nos leva a considerar como a relação com a natureza precisa também ser posta em outros termos. A obra convida à reflexão de como o mundo ocidental moderno se afirma a partir da ideia de um contrato social, sendo que, valendo-se de vários pensadores contratualistas, a lei e o direito são tomados como forma de estipular regras e normas básicas para o viver humano. Serres afirma, no entanto, que a natureza ficou de fora deste contrato – aparecendo nele apenas como propriedade. Sua grande contribuição é convidar à reflexão sobre que tipo de controle deveria ser imposto a quem acredita poder controlar a natureza (SERRES, 2013).
O livro se divide em quatro capítulos, cada um deles com subseções – podendo estar, em alguns momentos, em uma sequência de exposição lógica, ou se apresentar em um estilo que se aproxima mais do estilo aforístico. Marcado por forte densidade filosófica e vasto conhecimento sobre o pensamento clássico e moderno, procura discutir como conhecimento e norma jurídica se constituíram em parametrizadores da ação humana em sociedade. Sociedade essa que parece ter se esquecido que está posta em meio às condições naturais do planeta – não basta então cessar a guerra de todos contra todos (como queria Hobbes), é preciso ultrapassar a ideia de que a natureza é um inimigo a ser superado. Este escrutínio irá se ocupar mais acerca das discussões propostas nos capítulos 1 e 2 (Guerra, paz e Contrato natural) e em seguida se ocupará das discussões ocorridas no âmbito do grupo no encontro proposto para a discussão da obra.
Guerra, paz.
O sugestivo título do primeiro capítulo de o “Contrato natural” encaminha o leitor para uma reflexão sobre a agressividade humana. Partindo do quadro de Goya, Serres explora a ideia de que os opositores se afundam na areia, levando ao inevitável raciocínio de que é impossível que tais eventos possam produzir vencedores, já que em tempos belicistas as perdas são para todos – inclusive para os que acreditam poder se manter como meros observadores, ocupados em escolher um lado ou manter uma atitude cínica de desinteresse. No entanto, como deixar de considerar “[…] o mundo das próprias coisas, a areia movediça, a água, a lama, os caniços do pântano? Em que areias movediças nos atolamos em conjunto, adversários ativos e espectadores perigosos?” (SERRES, [1990], p. 12). Assim como Aquiles, que, não contente em combater seus semelhantes, em dado momento toma a natureza como inimiga, a humanidade segue impassível no combate a si mesma e na devastação do mundo a sua volta. E nesse processo
(…) a lama engole os contendores; o rio ameaça o combatente: a terra, as águas e o clima, o mundo silencioso, as coisas mais tácitas aí colocadas outrora como cenário em redor de representações vulgares, tudo isso, que nunca interessou a ninguém, brutalmente e sem dizer água-vai, se interpõe a partir de agora entre as nossas manigâncias. Irrompe na nossa cultura aquilo de que nunca tínhamos formado senão uma ideia local e vaga, cosmética – a natureza (SERRES, [1990], p. 14).
Tais reflexões, que remetem ao desenvolvimento de uma consciência para além do humano, inspiram autores que muito têm contribuído para pensar as relações sobre uma natureza cada vez mais afetada pelo antropoceno (LATOUR, 2020; STENGERS, 2015). O capítulo segue abordando as mudanças climáticas, já perceptíveis no início dos anos de 1990. Para ele vale mais a aposta de que nada se perde ao se desenvolver uma relação de proximidade à natureza. O contrário disso seria um diálogo monótono de agressões mútuas entre seres humanos que se negam ao esforço de decifrar as mensagens enviadas pelo planeta. Em vez de negociar a paz, preocupam-se muito mais em estabelecer os termos da guerra. E, assim, tornam impossível o diálogo. E, como os punhos não dão conta de seu propósito, valem-se de pedras, criam instrumentos de ferro, “[…] descobrem a pólvora, […] [buscam] aliados, concentram-se em exércitos gigantes, multiplicam a sua frente de batalha, no mar, na terra e nos ares, dominam a força dos átomos e transformam-na até as estrelas” (SERRES, [1990], p. 23). Uma vez estabelecidos os sacrifícios de sangue, lágrimas e perdas materiais, escamoteiam-se as aflições impostas à natureza. Serres afirma que as guerras subjetivas infligem uma violência objetiva ao planeta – teatro das hostilidades humanas. Este é o programa resumido do drama da história. O cenário da guerra como motor da história se impõe e o sentido da marcha da humanidade pode ser encontrado numa relação estreita entre a guerra e o direito – a norma regulamenta e justifica as hostilidades. O próprio contrato social surge da fábula da guerra de todos contra todos. O equívoco de Hobbes estaria em não considerar que “[…] se todos se batem contra todos, não existe um estado de guerra mas de violência, uma crise pura e desencadeada, sem paragem possível, ameaçando de extinção a população que nela se empenha. De facto e por direito, a própria guerra protege-nos contra a reprodução indefinida de violência” (SERRES, [1990], p. 30). E, se o contrato social impediu a guerra de todos contra todos, um novo direito deverá limitar a “[…] guerra de todos contra tudo” (SERRES, [1990], p. 31).
Contrato natural.
Serres abre o segundo capítulo refletindo sobre as concepções de tempo natural e tempo histórico – e de como, no mundo contemporâneo, é cada vez mais urgente pensar a indissociabilidade destas duas formas de conceber o devir. Por ter abandonado a sabedoria ancestral, tais como comunidades de camponeses e marinheiros, sempre expostas aos rigores do espaço aberto das intempéries que regem o equilíbrio do planeta, vive-se hoje na ilusória segurança de espaços internos, com a maior parte da humanidade ignorando o lastro que irremediavelmente a liga ao mundo natural. Imersa em uma artificialidade estéril, a humanidade parece ter rompido os laços que a ligavam com “[…] o mundo: transformámos as coisas em fétiches ou mercadorias, em apostas dos nossos jogos de estratégia; e as nossas filosofias, acosmistas, sem cosmos, desde há quase meio século, falam apenas de linguagem ou de política, de escrita ou de lógica” (SERRES, [1990], p. 52). O autor prossegue afirmando que, por viver no tempo curto de suas realizações, o ser humano parece ter perdido a conexão com a imensidão que compõe o tempo longo do planeta e seus processos. É como se houvessem sido erradicados conhecimentos e memórias ancestrais, que até bem pouco tempo se mantinham preservados em culturas e tradições milenares, que ora morrem ou estão prestes a desaparecer por conta do avanço do pensamento moderno. Sendo assim, as soluções propostas, tais como o reflorestamento e o abandono de combustíveis fósseis, ainda estão ligadas ao paradigma da cultura do tempo breve, apresentando-se como paliativos, incapazes de alterar a rota de colisão com o desastre ambiental.
Isto porque a modernidade é fundada em termos de um Contrato Social que imagina apenas a humanidade como sujeito de direitos. O Direito, permeado por uma positividade oriunda do conhecimento científico, desconsidera o não humano e deixa “[…] fora do jogo o mundo, enorme panóplia de coisas reduzidas ao estatuto de objetos passivos de apropriação. Razão humana maior, natureza exterior menor. O sujeito do conhecimento e da ação beneficia de todos os direitos e os seus objetos de nenhum” (SERRES, [1990], p. 62). A epistemologia e a metafísica da modernidade não conferem à natureza condições de participar de nenhum tipo de parlamento – o que não é novidade, já que muitos humanos, por questões étnico-raciais, de classe e gênero ainda sofrem o exílio da diferença. De qualquer modo, Serres propõe a reflexão do quão perigosa se configura tal prática e raciocínio, pois o que seria a objetificação da natureza – com todas as suas implicações – senão também a objetificação do que há de natural no humano? Essa racionalidade trouxe níveis altíssimos de uma voragem parasitária para a relação humano x natureza. Se, por um lado, o arcabouço jurídico surgido na modernidade permitiu “[…] limitar o parasitismo abusivo entre os homens, […] não fala dessa mesma acção sobre as coisas” (SERRES, [1990], p. 64). Para superar a condição de parasita, propõe-se um retorno à natureza, onde às conquistas de um contrato social somar-se-ia
(…) a celebração de um contrato natural de simbiose e de reciprocidade em que a nossa relação com as coisas permitiria o domínio e a possessão pela escuta admirativa, a reciprocidade, a contemplação e respeito, em que o conhecimento não suporia já a propriedade, nem a accão de domínio, nem estes os seus resultados ou condições estercorárias” (SERRES, [1990], p. 65).
Para além do conhecimento científico, movimentos oriundos na teologia já propunham uma escuta ativa da natureza (BOFF, 2004). Mas, no contexto de um mundo contratualista, como se apropriar da linguagem do natural a fim de firmar seu direito em um contrato? Serres afirma que a lógica poderia ser a mesma que permitiu a criação do contrato social como mito fundante do mundo moderno: ele também nunca foi escrito ou firmado, mas proposto em termos de um conceito mobilizador. Nisso a epistemologia moderna pode contribuir: existe conhecimento científico suficiente para que se possa pensar o natural “[…] em termos de forças, de ligações e de interações, e isto basta para celebrar um contrato” (SERRES, [1990], p. 67-68).
Serres aponta ser preciso reinventar a forma de praticar a política e o governo. Retomando Platão e Homero, argumenta por meio da metáfora do barco: negociar como estar neste barco/planeta é necessário. Mas não se pode fazer política abstraindo o mar – no caso, a natureza. A história da política tem sido a encenação da Ilíada – isto é, a do confronto entre humanos. Somente após a segunda grande guerra, os atores perceberam (nem todos) que o cenário é o da Odisseia – um navegar impreciso. Mais do que tomar a natureza por monstros, procelas e sereias, Serres argumenta que é preciso considerar sua força e, com ela celebrar armistício – o contrato natural. A nova prática de política e de governo não poderá mais se exercer sem a junção necessária entre as ciências humanas e as ciências da natureza. Tal esforço permitirá alcançar a “Terra real, a fisiopolítica, no sentido em que as instituições onde se situam os grupos dependerão de futuro de contratos explícitos que celebrarão com o mundo natural, nunca mais como nosso bem, nem privado nem comum, mas a partir de hoje como nosso sibita” (SERRES, [1990], p. 74).
Discussão do GECCE.
Segue agora uma tentativa de rastreio das discussões oportunizadas no grupo pela leitura do texto de Serres. Partirei do recurso etnográfico orientado pelo que se entende por observação participante, que “[…] obriga seus praticantes a experimentar, tanto em termos físicos quanto intelectuais, as vicissitudes da tradução. Ela requer um árduo aprendizado linguístico, algum grau de envolvimento direto e conversação, e frequentemente um ‘desarranjo’ das expectativas pessoais e culturais” (CLIFFORD, 2008, p. 20). Claro está que tal expediente sempre estará prejudicado pelo fato de que, em virtude do fenômeno pandêmico vivenciado desde 2020, as reuniões do GECCE têm sido mediadas por meios eletrônicos, que, embora permitam retomar a gravação dos encontros a fim de verificar ideias, falas e entonações, sempre esbarram em dificuldades, tais como a limitação da interação face a face, instabilidades técnicas com relação ao sinal de internet e, claro, as disposições individuais frente a uma câmera que irá registrar todas as expressões praticadas diante dela. Para além de tais questões, a antropologia também alerta para o mito da representação do real em sua totalidade. As vertentes atuais apontam que o trabalho etnográfico será sempre um decodificar e recodificar cujo processo não se dá de forma mecânica. Logo, embora tal afirmação seja polêmica, beira a construção de narrativas ficcionais. E, mesmo que o termo narrativa tenha adquirido contornos que vêm sendo tomados como o oposto da verdade, é preciso lembrar seu benéfico sentido de que as verdades, mesmo que científicas, sempre possuem certa parcialidade proveniente de seu viés cultural e histórico. Tem-se então que as narrativas etnográficas podem ser adequadamente chamadas de ficção, como artesanato cuidadosamente modelado, para preservar o adágio, tão útil à ciência, de que todas as verdades são construídas (CLIFFORD, 2016).
Voltando à reunião do GECCE, pode-se dizer que o grande pano de fundo das discussões foi a questão ambiental – sejam os regimes de chuva, vento e abastecimento de água no norte do Paraná e interior de São Paulo, seja a exploração predatória de biomas do Mato Grosso. Chamaram bastante a atenção as condições da exploração capitalista praticada por empresas chinesas e brasileiras da região de Moçambique. A degradação da natureza expôs o país aos perigos de ciclones que causam grandes prejuízos em termos materiais e de vidas humanas. Outro fato que merece registro se dá em relação à indústria do carvão, que, após décadas de extrativismo irresponsável, deixa o país africano sem maiores condições para que aquela atividade econômica seja substituída, e com boa parte de sua floresta destruída. A partir de Serres, mas também de autores como Latour, Stengers e outros, viu-se que práticas parasitárias que se preocupam apenas com resultados econômicos não são privilégio do capitalismo central – o que torna urgente a emergência de condições que permitam finalmente a construção de um Contrato Natural. O que só aumenta a responsabilidade da produção de material acadêmico que permita tal reflexão – um grupo de estudos culturais da ciência e das educações tem um compromisso que está para além da simples produção de teses e dissertações. Em seu horizonte de trabalho não pode perder de vista a necessária reflexão do que Serres chama de fragilidade de um existir apequenado diante da enormidade de uma Natureza. Esta que, duramente recalcada pela aliança entre voragem capitalista e produção tecnocientífica, retorna não de forma vingativa, mas apresentando os efeitos das constantes agressões sofridas.
Embora toda a discussão tenha se encaminhado no sentido de desenvolver o tensionamento às condições apresentadas acima, não houve dúvidas acerca da dificuldade de articular qualquer tipo de militância a partir de autores como Serres e Latour – as inúmeras contradições apontadas por eles ao pensamento crítico rompem com qualquer possibilidade de narrativas de caráter teleológico emancipatório. Para Serres, o agir humano é mestiço e imbricado, não podendo ser tomado apenas sob um único ponto de vista. Seu pensamento, ao recusar o caminho fácil das autoestradas, sugere a deriva por outras sendas e caminhos que não os já trilhados ou conhecidos. As respostas sempre fogem, porque ainda estão por ser construídas – o que se tem são “quase respostas” postas a partir de redes de pensamento que se sobrepõem e não permitem que se produza a síntese dialética. No entanto, impõem a urgência de novas formas de interpretar dados que a todo momento estão a provocar a inteligência e capacidade humana de representar o real – em termos atuais, a calamidade do antropoceno.
Daí a importância de um pensamento que se apresenta de forma lírica, mas não indecifrável. Livre da preocupação linear de apresentar sínteses de entendimento, pode apontar contradições e apresentar narrativas e disputas – sem deixar de recorrer à transcendência de inspiração religiosa ou a sentimentos como o amor como norteadores da reflexão. Apesar das controvérsias advindas da tentativa do humano de lidar com as disputas mediadas pela ciência e pelo direito, o devir ainda se configura em aberto. Uma humanidade que se viu lutando contra si e contra a natureza venceu o mundo. Porém vencido, o mundo vence – pois obriga a rever a relação estabelecida com ele: “[…] o próprio mundo assinou em conjunto com a sua assembleia, mesmo conflituosa, um contrato natural, oferecendo a razão para a paz e ao mesmo tempo para a transcendência procurada” (SERRES, [1990], p. 62).
Referências
BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
CLIFFORD, James. Introdução: verdades parciais. In: CLIFFORD, James; MARCUS, George. A escrita da cultura: poética e política da etnografia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Papéis Selvagens, 2016.
LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
MUSEO DEL PRADO (Espanha). Duelo a garrotazos. Goya y Lucientes, Francisco de. Madri, [s.d.]. Disponível em: https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/duelo-a-garrotazos/2f2f2e12-ed09-45dd-805d-f38162c5beaf?searchid=bb4d5abf-0666-b21e-798e-b4ff205523a0. Acesso em 29 out. 2021
SERRES, Michel. O contrato natural. Lisboa: Instituto Piaget, [1990].
SERRES, Michel. Michel Serres contrato natural. Vídeo (8,30 min.). Publicado pelo canal ITEC BRASIL. 15 mai. 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=p19RdK0WF6M. Acesso em 1 out. 2021.
STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac- Naify, 2015.
2A obra lida foi editada em Portugal. Logo, mesmo soando estranho ao leitor brasileiro, as citações diretas seguirão, de acordo com as regras da ABNT, as expressões idiomáticas e as regras ortográficas vigentes naquele país à época da publicação.
3Originalmente pintada em um painel na casa do artista espanhol, a obra hoje se encontra no Museu do Prado (MUSEU DO PRADO, 2021). Disponível em: https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/duelo-a-garrotazos/2f2f2e12-ed09-45dd-805d-f38162c5beaf