A última noite: Um prenúncio de nossos segundos finais no Relógio do Apocalipse
Por Susan C. Camargo
atualizado 3 anos atrás
O que faz da noite de Natal uma data tão especial para a maioria das pessoas? A resposta, é claro, vai variar por muitos fatores: culturais, familiares, econômicos… Mas o fato é, que mesmo quem não gosta ou não celebra a data, não passa ileso pelo “espírito natalino”, que toma conta do ano no mês de dezembro, seja por puro consumismo, ou por religiosidade, saudosismo, enfim. Iniciei falando da data, porque é nela que está ambientada a trama de A Última Noite (2021), longa-metragem estadunidense que gostaria de recomendar a vocês nesta edição. Vale dizer que o título original do filme, Silent Night, é o mesmo título da famosa canção natalina que aqui conhecemos por Noite Feliz, e que, confesso, é bem mais apropriado à temática do longa do que a adaptação de título realizada pelo estúdio no Brasil.
O filme não situa o ano em que se passa, mas aparenta ser em um futuro próximo. O longa se inicia como qualquer trama natalina genérica: acompanhamos a família de Nell e Simon, composta também pelos filhos do casal, o pré-adolescente Art e os gêmeos Hardy e Thomas, que são os mais novos. A família, que se encontra em sua confortável mansão localizada em uma propriedade rural de algum lugar da Grã-Bretanha, está se preparando para receber amigos e parentes para o que seria mais um dentre tantos jantares natalinos.
Durante os primeiros quarenta minutos, acompanhamos clichês tanto da celebração quanto das obras baseadas no feriado: a família anfitriã arruma a casa, confere as decorações e os pratos da ceia, recepciona calorosamente os convidados, que tendem a deixar desavenças de lado por conta da magia do Natal para aproveitar ao máximo o que a data tem a oferecer. No entanto, alguns sinais nos avisam de que algo não está ‘normal’ com a situação. O primeiro deles é quando Art, o filho mais velho do casal, se corta enquanto corta cenouras, e sua mãe usa saliva (ao invés de água) em um lenço para ‘higienizar’ o machucado.
Há também uma incessante tentativa em soltar as galinhas da propriedade, porque de acordo com Nell, sua mãe lhe disse que “seria mais gentil se as raposas as pegassem primeiro”, o que prenuncia que algo ruim se aproxima. As crianças também são “autorizadas a xingar”, até mesmo as menores.
O filme se delonga para nos contar o que de fato está ocorrendo, nos deixando tão angustiados quanto os personagens conferindo seus relógios, mas, na ceia de Natal, finalmente nos é revelado o destino daquelas pessoas: o apocalipse se aproxima, com a chegada de um redemoinho de gases tóxicos e mortais para a todas as formas de vida no planeta.
O que os levou àquele “fim irremediável” foram os inúmeros desastres ambientais e climáticos ignorados ao longo dos anos, e o último ato de ‘bondade’ do governo britânico foi conceder a cada um de seus cidadãos uma ‘pílula do suicídio’ (‘exit pill’) para “morrer com dignidade”, de forma indolor, ao contrário dos efeitos nefastos dos gases no sistema nervoso até o total colapso dos órgãos do corpo humano.
Nesse momento da trama, acompanhamos o confronto entre Art e Kitty, pois, enquanto aquele até menciona o esforço que Greta (Thunberg, a famosa ativista ambiental sueca) fez para avisar a todos, contando até mesmo com a ajuda de Leonardo DiCaprio, embora as pessoas tenham preferido seguir com suas vidas até o planeta resolver “cuspir para fora todo o lixo imundo”, Kitty se mostra irredutível em dizer que a culpa não é da sociedade e sua negligência com o planeta e os alertas climáticos, e sim dos russos que estavam “obcecados com a dominação mundial”.
Durante essa parte do filme, foi inevitável não lembrar de Latour (2020), de que, quando lidamos com esse negacionismo para com as questões climáticas (e leia-se para com a ciência também), não estamos lidando com mera ignorância, e sim com um projeto arquitetado para salvar apenas a minoria (dos mais ricos), deixando os demais à própria sorte. E isso se conecta diretamente com a continuação do diálogo entre os primos, pois Kitty constata que, ao menos o governo deles, foi misericordioso em oferecer uma pílula para cada um, ao contrário de outros países.
Há, no entanto, um limite para essa atitude empática dos políticos do longa, e ela termina nos moradores de rua e nos imigrantes ilegais, que não tiveram direito às pílulas para uma morte menos dolorosa. É claro que, com exceção de Art, mais ninguém na família parecia se importar com o destino daqueles “invisíveis”. Mas, de novo, podemos recorrer a Latour (2020), já que mesmo nessa obra de ficção
[as elites] decidiram que seria preciso construir uma espécie de fortaleza dourada para os poucos que poderiam se safar – do que decorre a explosão das desigualdades. E resolveram que, para dissimular o egoísmo sórdido de tal fuga para fora do mundo comum, seria preciso rejeitar absolutamente a ameaça que motivou essa fuga desesperada – o que explica a negação da mutação climática (LATOUR, 2020, p. 23).
Dentre os muitos alertas que Latour nos faz ao longo de sua obra, considero que o principal deles é justamente a importância de entendermos o papel das classes dominantes em toda essa confusão, pois foram eles quem perceberam, muito antes de todos nós, a gravidade da questão climática. Uma vez tomado conhecimento do problema, essa elite (a qual o autor nomeia também de “elite obscurantista”) abandonou a solidariedade com o povo das classes econômicas mais baixas (e principalmente com os imigrantes), já que, se a Terra é insuficiente até mesmo para os planos da elite, não há por que compartilhá-la com quem está ‘fadado’ a perder tudo, de uma forma ou de outra.
Eu poderia me estender por longas páginas aqui, pois existem muitos outros momentos de A última noite (2021) que permitem conexões e inúmeras discussões com os Estudos Culturais das Ciências e das Educações. Não se trata de um filme inovador, ou livre de problemas de roteiro, mas sem dúvida, é um longa que vale a pena ser conferido, e que ainda conta com uma reviravolta capaz de nos deixar pensativos por vários dias.
Referências
A ÚLTIMA NOITE. Disponível em: <https://www.imdb.com/title/tt11628854/>. Acesso em: 15 fev. 2022.
LATOUR, Bruno. Onde Aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.