Número de feminicídios no 1º semestre supera o de 2022, ano do recorde no Brasil
Ricardo Brandt, via SBT News
atualizado 1 ano atrás
708 mulheres foram mortas por serem mulheres, de janeiro a junho de 2023; em SP, MG e no DF, casos superam total de anos anteriores
Por Ricardo Brandt, via SBT News – 02/11/2023 às 19:45
Os números de feminicídios no Brasil crescem em 2023. São pelo menos 1,1 mil mulheres assassinadas até setembro, por serem do sexo feminino – o chamado crime de gênero. O dado inédito, ao qual o SBT News teve acesso, é do recém lançado Monitor dos Feminicídios no Brasil. Crimes como o da cantora gospel Sara Mariano, vítima de feminicídio na Bahia na última semana, são parte de uma estatística em crescimento contínuo nos últimos anos.
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São quatro feminicídios por dia, em média, no Brasil nos últimos três anos. Um problema social cada vez mais presente dia a dia brasileito e ainda carente de soluções efetivas. O SBT News buscou dados atualizados das polícias em alguns estados, cruzou com os levantamentos nacionais oficiais, ouviu especialistas, familiares de vítimas e o governo federal sobre o problema.
A reportagem mostra que 2023 caminha para bater 2022, o pior da série histórica – ou, no mínimo, se equiparar. Nos seis primeiros meses do ano, dados mostram esse crescimento. De janeiro a junho, o Monitor dos Feminicídios no Brasil contou 708 mulheres mortas, vítimas desse tipo de crime.
O Monitor do Feminicídio no Brasil foi criado no Laboratório de Estudos do Feminicídio (LESFEM), da Universidade Estadual de Londrina (PR), e não contabiliza dados de anos anteriores. A reportagem do SBT News usou outro levantamento como comparativo para mostrar a tendência de alta
Em igual período de 2022 – ano do recorde desde a criação da Lei do Feminicídio, em 2015 – foram 699 crimes do tipo. Um ano antes, 2021, foram 677. Os números são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública – considerado o mais importante monitor das criminalidade no Brasil.
1.098 feminicídios até setembro de 2023, segundo o Monitor do Feminicídio no Brasil
O método usado pelo novo Monitor do Feminicídio no Brasil, criado por pesquisadores em Londrina (PR), diminui a margem de subnotificação, decorrente do não registro policial do crime como um feminicídio, segundo explica a socióloga Silvana Mariano, coordenadora do LESFEM.
“Temos críticas em relação às classificações que são feitas pela polícia. Infelizmente, quando pegamos os dados da Justiça, aumenta a quantidade de feminicídio. Significa que existem muitos casos que a polícia não faz o indiciamento por feminicídio, mas depois, o Ministério Público faz. Pelos próprios dados da Segurança Pública, existem homicídios de mulheres cuja autoria é de companheiro e ex-companheiro, detectam a autoria, e não foi classificado como feminicídio. Só para mostrar o tamanho do abismo que temos, do hiato que se tem nesse tipo de dado”, Silvana Mariano, socióloga e coordenadora do Leboratório de Estudos do Feminicídio da UEL.
“Existe muita subnotificação e está entre as motivações do projeto. Porque, por exemplo, nos dados da segurança pública no Brasil, os feminicídios são aproximadamente um terço dos casos de homicídios de mulheres. Nós não acreditamos nesse tipo de dado. Achamos que é muito mais”, diz Silvana.
O QUE É FEMINICÍDIO
Por lei, feminicídio é o assassinato de mulher em caso de violência doméstica ou motivada pela discriminação da condição do sexo feminino. O feminicídio passou a fazer parte da legislação penal brasileira em 2015. Na pena do crime de assassinato, o feminicídio pesa como uma forma qualificada do crime, gerando o agravante, que aumenta a pena.
A lei 13.104/2015 estipula três hipóteses para que o homicídio seja qualificado como feminicídio:
- quando a morte é decorrente de violência doméstica e familiar em razão da condição de sexo feminino;
- em razão de menosprezo à condição feminina;
- em razão de discriminação à condição feminina
Na Bahia, o caso da cantora Sara Mariano, que tinha 38 anos, engroussou essa estatística. No dia 24 de outubro, ela foi dada como desaparecida pela família e o marido, Ederlan Mariano, chegou a pedir ajuda nas redes sociais para encontrá-la. Três dias depois, o corpo foi encontrado pela polícia, em uma estrada, carbonizado. Ela deixou uma filha de 11 anos. O marido foi preso e o caso passou a ser tratado como feminicídio.
Na Bahia, 68 feminicídios foram registrados este ano, quase a mesma marca de 2022 em igual período, quando foram 72 caso. Fora aqueles que escaparam da contagem, devido ao registro policial. Como o caso de Raquel da Silva Almeida, que tinha 34 anos. A vítima foi encontrada morta com golpes de faca em sua casa, no domingo (24.out). O filho de 11 anos também foi ferido, mas sobreviveu. O principal suspeito é o marido, Diego Andrade, mas o caso não foi registrado pela Polícia Civil como feminicídio, no boletim de ocorrência.
Estados em alta
Os números de feminicídios nos estados que puxam as estatísticas para cima, devido ao número de habitantes. Os dados das polícias, em 2023, também confirmam a tendência de alta. Mesmo antes do final do ano, São Paulo e Minas Gerais já superam 2022 – na análise por períodos. Na Bahia e no Rio de Janeiro, os registros estão nos mesmos patamares do ano passado – quando foi registrado o recorde. O SBT News levantou estatísticas de registros de feminicídios nas secretarias de segurança dos estados.
São Paulo tem os maiores números de feminicídios, devido à sua população, que é a maior do país. Foram 142 feminicídios até agosto deste ano. Número 16% superior ao registrado em igual período de 2022, ano do recorde. Supera também todos os 140 feminicídios registrados em todo ano de 2021.
Em Minas Gerais, os casos de feminicídio em 2023 repetem os altos índices de 2022. De janeiro a julho, os dados da Secretaria de Segurança Pública mostram que foram 96 crimes do tipo até aqui, contra 93, no ano passado. Números que superaram o total registrado em todo 2020, quando 84 mulheres foram vítimas de feminicídios, nas cidades mineiras.
No Rio, 72 feminicídios foram registrados de janeiro a agosto. Em igual período do ano passado, foram 74. Números que se equiparam ou superam os totais registrados nos anos anteriores, considerando os 12 meses. Em 2020 foram 78 crimes do tipo. Em 2018, foram 71.
No Distrito Federal, onde mais uma vítima de feminicídio morreu nesta semana, o total de casos deste ano é quase o dobro do total de 2022. Foram 29 casos neste ano, contra 17.
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Outro destaque negativo observado foi a taxa de feminicídios em relação ao total de assassinatos de mulheres. No Brasil, das 4.034 mulheres mortas no ano passado, 35,6% foram casos de feminicídio. No DF, essa taxa foi de 59,4%.
Crescimento da violência
Em números totais, estados como São Paulo, Minas e Bahia lideram os casos de feminicídios por serem os mais populosos. Mas quando se contabiliza as ocorrências, levando em conta a quantidade de moradores, estados como Rondônia e Mato Grosso estão no topo do ranking.
Em 2022, por exemplo, 24 mulheres foram vítimas de feminicídio em Rondônia. Parece pouco, comparado aos 195 de São Paulo, mas quando se faz a conta proporcional, a realidade é outra. O estado do Norte tem uma taxa de 3,1 crimes, para cada grupo de 100 mil moradores, primeiro da lista do Brasil. O estado do Sudoeste, é o último dessa mesma lista, com taxa de 0,9.
A violência contra a mulher cresceu de forma generalizada no país em 2022 – dado que inclui os feminicídios e outros crimes contra a mulher. Ao divulgar em agosto o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023 – documento que é referência em estatísticas criminais -, especialistas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública destacaram o aumento geral.
“Infelizmente não nos surpreende que o Anuário deste ano traga o crescimento de todos os indicadores de violência doméstica e demais modalidades de violência contra a mulher.”
Porto (in)seguro
A maioria das vítimas é morta em casa, pelo companheiro ou pelo ex. Em 2022, metade dos crimes (53%) foi cometido pelo parceiro da vítima (seja namorado, marido ou amante), e 19% envolveram o ex-companheiro, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança de 2023.
Outra característica peculiar ao tipo de crime, em relação aos demais assassinatos de mulheres, é que sete de cada dez vítimas foram mortas dentro de casa. Na metade dos casos de feminicídio, a arma usada é uma faca – arma branca, no termo oficial. As armas de fogo vem em seguida, cerca de um quarto dos casos.
Na maior parte dos casos, o roteiro e o perfil dos crimes e dos envolvidos têm semelhanças bem específicas do feminicídio. Dois estudos recentes que aprofundam o tema e dão a radiografia do problema no país, são o Anuário de Segurança e o “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil”, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Na 4ª feira (01.nov), a influeciadora digital Luana Caroline Verdi, de 34 anos, entrou para essa fria estatística. Mãe de dois gêmeos de 11 anos, ela constumava postar imagens de sua rotina e dos filhos. Foi assassinada a tiros em casa, enquanto dormia, pelo marido, Victor dos Santos, de 36 anos, que se suicidou na sequência. Ele não aceitava o fim do casamento.
Na última semana de outubro, Laísa Rocha da Silva, de 35 anos, morreu no Distrito Federal, dez dias após ser esfaqueada pelo marido. Deixou duas filhas. Dias antes, Angela Maria Ferreira Brito, de 41 anos, foi morta em casa, em São Bernardo do Campo (SP), na frente do filho. O assassino é o marido, Carlos Alberto de Brito, com quem viveu 24 anos. Duas semanas antes, a dentista Bruna Angleri, de 40 anos, foi assassinada dentro de casa, em Araras (SP), pelo ex-namorado, com dois tiros no rosto e teve o corpo queimado. Deixou um filho de 8 anos.
Quatro vítimas de feminicídios recentes, registrados em cantos distintos do Brasil, que se unem por características comuns e predominantes nesses crimes. Mulheres, vítimas do companheiro ou ex-companheiro, assassinadas, dentro da própria casa e deixando filhos.
Família vítima
São quatro mulheres assassinadas por dia no Brasil por serem mulheres. Uma média mantida desde 2021. Com as vítimas, filhos, pais, irmãos, parentes e amigos também são afetados diretamente por esse tipo de crime. Só em 2022, pelo menos 2,4 mil crianças e adolescentes ficaram órfãos de vítimas de feminicídios no Brasil e vivem sob cuidados de parentes ou foram para abrigos.
Por envolver violência dentro do lar, estudos também apontam que “na maior parte dos casos de feminicídios, filhos, familiares ou amigos das vítimas já haviam presenciado as agressões”.
No interior de São Paulo, a dentista Bruna Angleri foi assassinada no dia 24 de setembro e o caso foi registrado como homicídio. O principal suspeito, o cantor João Victor Malachias, tinha uma medida protetiva pedida por ela, após uma agressão anterior. Foi ouvido na delegacia no dia do assassinato, mas liberado. Com histórico de violência, não aceitava o fim do namoro de sete meses e fugiu. Foi preso dias depois, perto de Ribeirão Preto (SP).
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Bruna deixou um filho. Na semana em que foi assassinada pelo ex-namorado, que não aceitava o fim do relacionamento que durou 7 meses, ela cuidava dos acertos finais da festa contratada de aniversário de 8 anos do garoto. Festa que foi cancelada e deu lugar a uma manifestação, que reuniu mais de 200 pessoas, na cidade do interior paulista, para cobrar Justiça e o fim da violência contra mulheres.
“O feminicídio é um tipo de assassinato que, em geral, afeta na família uma estrutura sempre maior. Não buscamos apenas qualificar a tragédia, mas alertar para a gravidade do problema e lembrar que são vidas interrompidas ou afetadas pela violência de gênero”, afirma a socióloga Silvana Mariano, que criou e passou a estudar o tema, após entrar nessa fria estatística.
“Por trás de cada estatística há uma mulher, uma família, uma comunidade, sonhos desfeitos e um futuro incerto.” Em abril de 2019, a auxiliar de enfermagem Cidnéia Mariano, sua irmã caçula, foi vítima do marido, em uma tentativa de feminicídio.
Néia, como era conhecida, foi espancada, estrangulada e jogada em uma estrada na zona rural de Londrina (PR). O companheiro não aceitava o fim do casamento. Ela sobreviveu, ficou tetraplégica. Por dois anos, sobreviveu, sem sair da cama. Morreu em 2021, pouco tempo depois do assassino ser condenado pela Justiça.
Proteção falha
Entender o perfil das vítimas e os pontos semelhantes e os distintos entre os feminicídios e os homicídios em geral de mulheres faz parte dos estudos de segurança, que ajudam a compreender o fenômeno social, cada vez mais em evidência no noticiário, e a definir e propor políticas públicas mais eficientes.
“O Pacto de Prevenção aos Feminicídios, que foi lançado em agosto pelo presidente Lula, tem como propósito reduzir os índices de feminicídio no Brasil, que teve aumento em relação ao último ano”, afirma Pagu Rodrigues, coordenadora da Polícia de Prevenção à Violência contra a Mulher, do Ministério das Mulheres.
A socióloga e membro do governo, destacou em entrevista ao SBT News que o “aumento significativo” de feminicídios acompanha “o aumento de inúmeras violências contra as mulheres”.
Para Pagu Rodrigues, os números são preocupantes e a alta decorre do aumento efetivo de feminicídios e como consequência da tipificação penal do crime, a partir de 2015, e das políticas públicas recentes, de fatores sociais como a pandemia da covid-19 e da misoginia.
“Acho que são as duas coisas que estão acontecendo. No momento em que passa a ser registrado como feminicídio, acaba tendo um boom de números. E no último período, considerando a pandemia e a gestão anterior, do governo Bolsonaro, que incentivou um processo de misoginia no Brasil, a gente tem realmente um aumento desse índice de feminicídio.”
A relação entre os feminicídios e a política do governo Bolsonaro e seu discurso ideológico, citada pela coordenadora da área do Ministério das Mulheres, não é invenção de opositor para ataque. Estudos recentes sobre o tema, como os do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, destacam essa hipótese.
“O desfinanciamento das políticas de proteção à mulher por parte da gestão de Jair Bolsonaro, que registrou a menor alocação orçamentária em uma década para as políticas de enfrentamento à violência contra a mulher”, por exemplo, é apontado entre as possibilidades que justificam o recorde de casos em 2022 e o aumento ininterrupto da violência contra as mulheres no Brasil.
Fala também do “cenário de crescimento dos crimes de ódio da ascensão de movimentos ultraconservadores na política brasileira, que elegeram o debate sobre igualdade de gênero como inimigo número um”.